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Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

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Artigos • 30 jun, 2019

Bater perna (Texto de Fabrício Carpinejar)


A culpa em Minas está diretamente ligada ao amor. Você se vê culpado até por aquilo que não aconteceu

Mineiro que é mineiro quando sai de casa quer resolver o mundaréu de convites que estava devendo.

Ele demora para largar o aconchego de seu lar, mas, quando decide, não quer perder a viagem. Pretende aproveitar o máximo do tempo para dar conta da blitz afetuosa e quitar a lista de intenções do ano passado.

Não é mais um passeio, e sim uma romaria. Se perigar, é capaz de visitar cinco pessoas no sábado, com um tiquinho de café num, um tiquinho de broa no outro, jamais recusando provar os petiscos.

Confunde-se com um trem: várias estações a descer até o fim dos trilhos. Não é à toa que suspira “trem” para qualquer “treco”.

A maratona não corresponde a um plano ideal, porque ele gosta de conviver longamente e se dedicar a um único compromisso. Trata-se de uma emergência, um acerto de contas para não ser mal falado. Prometeu demais aparecer e já passaram meses do combinado. Precisa surgir de qualquer jeito para renovar a validade das palavras e não arcar com a fama de mentiroso.

Mineiro é supersticioso. Não aceita abrir a boca em vão.

Pressinto a correria da esposa no momento em que confessa que a família vem reclamando que anda sumida e que, se continuar sem dar notícias, pensará que ela morreu. Aliás, mineiro apenas aceita notícias pessoalmente, caso contrário não acredita.

Conversar por telefone ameniza a saudade, ajuda um pouco a entender o problema, porém não substitui a presença em carne e osso. Aqui é São Tomé com Phd: só tocando para crer.

Minha esposa quando fala que vai visitar uma tia é uma parcela da verdade: pretende visitar todas as suas tias. É a tia Norma. É a tia Geni. É tia Therezinha. É tia Naná. Será o dia das tias. O dia exclusivo da tiarada.

Não pode deixar nenhuma de fora, para não ser injusta. Pois se uma fica sabendo, o risco da desilusão é iminente. Uma tia pode se sentir preterida e não atender mais as ligações. Mineiro quando se chateia simplesmente não atende mais as ligações. Finge-se de surdo. O silêncio é a sua terrível vingança: desaparece de repente para gerar preocupação, obrigando quem fez a desfeita a ir a sua casa e bater à porta.

A culpa em Minas está diretamente ligada ao amor. Você se vê culpado até por aquilo que não aconteceu. Força-se a alegria com medo da tragédia.

Conheço o romance de cor. Minha mulher escreverá as 4.215 páginas de “Em Busca do Tempo Perdido” em 24 horas, num Proust edição concentrada para o Enem.

É um tudo ou nada de pernada. Coloca uma mala dentro da bolsa e lembrancinhas embrulhadas em papel-presente para suavizar e redimir a longa ausência. Nunca chega de mãos abanando, leva ainda que seja uma cocada ou uma paçoca ou uma caixa de bombons.

Ela parte de manhãzinha e somente voltará à noite. Para não render o assunto comigo, avisa que será rapidinho. Leia-se rapidinho em cada uma das trocentas paradas. Já estarei dormindo, certamente, em seu regresso. Nem me preocupo mais como antes.

Às vezes acredito que está em permanente campanha eleitoral, tentando desesperadamente não perder os votos que possuía.

Assim como há a data reservada para as tias, ainda tem o dia dos primos, dos tios, dos tios-avós, dos amigos, dos colegas de trabalho. A sorte que é filha única e sobrou um dia para mim, senão teria ainda o dia dos irmãos.

Nunca vi ninguém cuidar tanto da família como o mineiro. Não suporta o adeus, muito menos tolera o tchau. É inté! (traduzindo: volte logo, sem desculpas).




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