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Artigos • 24 jan, 2018

Cerejas da vida


 VITTÓRIO MEDIOLLI
Enquanto jovem, enxerga-se o mundo à luz ofuscante do meio-dia, brilhos fervilham na paisagem. Qualquer um deles poderia ser ouro. O calor esquenta, os raios queimam a pele.

Isso também passa rapidamente, os anos escorrem como águas do rio e mudam nossa postura. O ocaso deixa a luz dourada, amena. Somem os brilhos que faziam crer na riqueza em cada reflexo, e os cacos de vidro aparecem. Surge em seguida a certeza de que o ouro, como o diamante, se esconde nas profundezas, e ambos são de quem sabe lavrá-los com perseverança.

A vaidade juvenil se apaga como o vento, a fabricação de hormônio diminui. Começamos a sentir quão ingênuos e tolos fomos no começo.

“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro”, disse Mário de Andrade em seu poema dedicado aos “maduros”. “Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço”.

Perde-se, ao encanecer, a disposição para lidar com mediocridades, para recorrer à vingança, efêmera e vã; compreende-se que acima tem “alguém” todo-poderoso que sabe escolher a dose e o momento mais certo, sem pressa.

Os rótulos se apagam, e os conteúdos se exaltam. O tempo que foge passa a ter valor extraordinário, inestimável. Não dá mais para errar. Tem que dar certo, as últimas chances têm que dar inapelavelmente certo. Os dias amanhecem como presentes raros; para serem aproveitados, sem ansiedade, mas até o fim.

O sono se faz curto, e as horas na cama são mais pensativas. Não se perde tempo com futilidades, com conversas sem motivo, com lucros sem sentidos. As mentiras e os subterfúgios machucam os ouvidos como sirenes.

Enxerga-se a beleza nos defeitos, nas raridades, no esforço uníssono da natureza para atingir a perfeição.

Depois de muito trabalho, entende-se que a obra mais importante é fazer da vida a verdadeira obra, que a glória não está nesta terra. Compreende-se que quem pede é o mais infeliz, e quem doa sem nada querer é o verdadeiro feliz.

Perde-se a capacidade de levar a sério a teatralidade, a vaidade, o orgulho, as conversas prolixas. Valorizam-se o sorriso, a desculpa singela, um olhar de compaixão.

Aprende-se a ler palavras nos olhos, mais que nos lábios. Ainda a manter a calma mesmo frente à pequenez e à deslealdade. Passa-se a medir as pessoas pela sinceridade que ilumina o universo.

Não são mil beijos que enchem de satisfação, mas um, apenas um, intenso, que gruda na pele um sentimento de amor.

A casca dura se quebra com o peso dos anos, revelando a essência, o doce da vida.

Aí, sim, se entendem quantas oportunidades perdemos, quanta polpa deixamos junto aos caroços.

Só com a bacia vazia descobrimos o fantástico valor das últimas cerejas, dos dias que restam.

Enquanto se aproveita ainda o rarefeito sabor do caroço, os arrependimentos se extinguem, o medo do fim deixa apenas lugar a uma satisfação muda e intensa. A paz retribui a quem cumpriu a sua missão.

(O Tempo – BH)



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