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Artigos • 30 jun, 2020

Confinamento e vontade de vida


Esse confinamento é também um confinamento de energia, de privação da vida. Quanto mais ficamos limitados a alguns metros quadrados da nossa casa, apartamento ou mansão (dependendo do caso), mais queremos sair para viver experiências. Mais cedo ou mais tarde, a vontade explode na proporção oposta ao grau do confinamento. Confinamento rigoroso, vontade de vida mais intensa.

Queremos fazer novamente, com gosto, tudo aquilo que mais alimenta a nossa existência. Espinosa chama de potência de agir aquilo que nos motiva, leva-nos à alegria. É o que eu chamo de aquecimento da alma, o que para a gente faz valer a pena viver, o que fazemos de forma leve e espontânea, sem nem notarmos que existe o tempo.

É certo que a internet tem segurado um pouco a barra da nossa angústia durante a quarentena, permitindo-nos dar vazão à necessidade de interagir, conversar e se expressar. O crescimento da quantidade de lives é uma manifestação disso. A busca por conteúdos ao vivo no Youtube cresceu quase 5.000% desde a segunda quinzena de março (dados fornecidos pela própria empresa). A Business Insider divulgou que houve crescimento de 70% nas lives do Instagram no segundo mês da quarentena. O projeto Brasil Internet Exchange, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, registou recordes de dados consumidos durante a pandemia.

São lives para todos os gostos: política, arte, religião, autoajuda, cursos, encontros familiares etc. Eu mesmo participei de um encontro virtual com amigos com os quais não encontrava (todos juntos) há mais de 15 anos (o meu rostinho é de 20, mas tenho um pouco mais de idade).

Então, bingo para Aristóteles. O que vivemos atualmente – a forma como lidamos com o confinamento, a manifestação do interesse de socialização, ainda que a distância por recursos digitais – reforça que o homem é um ser social por natureza. Queremos interagir, falar ao mundo, manifestar, gritar, ser ouvido e notado no palco da vida. É nessa sociabilidade que a gente se realiza enquanto seres humanos.

Recentemente, eu produzi um vídeo para a UnBTV com depoimentos de professores e estudantes dizendo o que mais desejam fazer quando a pandemia acabar. Uma das respostas mais frequentes (se não a mais) foi encontrar e dar fortes abraços em familiares, amigos(as) e namoradas(os).

Nós, brasileiros, parecemos até que gostamos ainda mais de sermos humanos, no sentido da proximidade, do calor humano, da interação, da troca. A gente se encontra e já dá a mão, abraça, beija, dá tapas nas costas. Em várias outras culturas, como na Ásia, as pessoas se cumprimentam sem se tocar. Já estamos aprendendo esse hábito oriental, também. Dar as mãos já não combina com o tal do “novo normal”.

O confinamento, praticamente, tem nos obrigado a refletir sobre quais são os valores realmente caros para nós. Acredito que o espírito de comunidade, essa vontade sincera de afeto e compartilhamento, é elemento quase que universal da nossa força. A ideia de comunidade é uma virtude, muitas vezes enfraquecida sem percebermos, reduzindo a nossa vitalidade e a nossa potência. Muito da nossa violência (conosco mesmos e com os outros) tem origem na falta de boas interações e bons relacionamentos. O círculo da violência. Sem entendermos o porquê, canalizamos erradamente essa energia.

A humanidade vive cada vez mais aglomerada em cidades cheias, barulhentas e movimentadas. O Distrito Federal, por exemplo, tinha menos de 150 mil habitantes em 1960, algo em torno do que hoje tem Águas Claras. Em 2019, o DF registrou mais de 3 milhões de habitantes.

Mais gente não significa, necessariamente, mais união e bons afetos. O distanciamento comunitário hoje parece ser cada vez maior, minando a mútua ajuda, preocupação e solidariedade. A maneira como lidamos e nos relacionamos uns com os outros, com mais ou menos fraternidade, mais ou menos competição, também pode ser a manifestação de um projeto político tão abstrato e diluído que nos incapacita de perceber o universo que nos envolve.

A própria oferta ou restrição de oportunidades é aplicação do projeto, amenizando ou tensionando as relações no corpo e na base da pirâmide. Foucault chama de “microfísica do poder” esse poder não central, do Estado, mas sim um poder difuso, capilarizado no cotidiano e nas relações sociais. “O poder está em toda parte”. Essa onipresença em si já é um fator de invisibilidade do poder.

Bens materiais e competições por status podem ser distrações que nos distanciam da verdadeira potência de agir ou do aquecimento da alma, que passa pela nossa conexão sincera. Na angústia do confinamento, há faíscas de consciência sobre o que nos faz verdadeira e satisfatoriamente humanos. Cabe saber se resgataremos a nós mesmos ou se seremos mais uma vez encantados pelo(s) Mestre(s) dos Magos para nos manter presos na fantasia dos egoísmos coletivos.

(*) Bruno Lara é jornalista e está cursando pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UnB – CREDITO: CAMPO GRANDE NEWS




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