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Artigos • 06 maio, 2021

Masquidiotas contra a lei


(por Conrado Hübner Mendes)_ 

Usar máscara não está entre os dramas éticos e escolhas trágicas da pandemia

A língua alemã fez da pandemia uma usina de neologismos. Entre mais de mil palavras originais (como contou Carolina Vila-Nova), “Maskidiot” pede exportação imediata. O português não tinha termo tão sintético e conceitualmente preciso para definir esse valente malcriado das cidades brasileiras —o masquidiota.

O masquidiota se recusa a usar máscara por onde anda. Não porque não possa, viva na pobreza sem assistência de saúde ou sua religião não permita, mas porque se considera livre. Em nome da liberdade do eu sem máscara, num ato heroico contra as ditaduras temidas por sua imaginação neurótica, o masquidiota se dá o direito à irresponsabilidade.

A palavra “idiota” se usa aqui no sentido original: indivíduo estritamente privado, alheio ao espaço público e à esfera política da vida humana, portanto indiferente à democracia e desprovido de equipamento moral para praticar solidariedade, compaixão e justiça. Ou mesmo obediência à lei.

Usar máscara cumpre pelo menos três funções: proteger sua vida; proteger a vida do outro; comunicar que se importa e participa de um esforço coletivo. O masquidiota dá de ombros à segunda e desconhece a terceira. Diz que já se vacinou, que já se contaminou ou que tem direito de resistir à opressão.

O Brasil da pandemia produziu célebres masquidiotas: o desembargador que falava francês; o engenheiro civil formado; o presidente da República que cospe enquanto aglomera e seu milico-ministro que deixou milhões de testes apodrecerem, rejeitou milhões de doses de vacina, produziu milhões de comprimidos de cloroquina, deixou a Amazônia sem oxigênio e passeia sorridente em shopping de Manaus como um idiota bem acabado.

A pandemia trouxe muitos dilemas éticos dramáticos. Alguns exemplos: médicos ponderam critérios de prioridade na UTI, de acesso de familiares em “situações de fim da vida”, de confidencialidade e privacidade de pacientes etc.; cientistas avaliam acelerar protocolos na pesquisa por tratamentos e vacinas; gestores públicos lidam com limites orçamentários, prioridades na vacinação, riscos de abertura ou fechamento de escolas e o princípio da precaução.

Fazem “escolhas trágicas”, como se diz na literatura de ética pública. São escolhas que envolvem perdas e lidam com vida e morte. Não produzem um final feliz, mas ainda assim se justificam à luz de valores morais, princípios jurídicos e do grau de certeza das evidências científicas em cada momento.

O cidadão comum também enfrenta seus próprios dilemas éticos. Nenhum deles diz respeito a usar máscara, se sua condição social e econômica não impedir. Recusar a máscara seria tolice até mesmo para as versões mais tresloucadas da ética libertária. Não existe, nem moralmente, nem juridicamente, liberdade para violar direitos do outro, menos ainda quando o ônus é tão banal quanto vestir máscara.

Mas o falso dilema já foi resolvido pela lei. É obrigatório “manter boca e nariz cobertos por máscara” quando circulamos “em espaços públicos e privados acessíveis ao público” (lei 13.979/20, art. 3º-A).

Alguém pode dizer que ainda subsiste o dilema ético de desobedecer a lei, caso fosse de uma injustiça e opressão insuportáveis. Não é. Resta a fiscais aplicarem a lei com discernimento em cada situação concreta.

O presidente até vetou, mas o veto foi rejeitado pelo Congresso. Deputados aliados propuseram projetos de revogação. Heitor Freire (PSL-CE), por exemplo, enxergou “postura cômoda estatal tirana” que “propaga a famigerada indústria da multa”; Bia Kicis (PSL-DF), cética da “fraudemia”, argumentou que “há distinção entre a ausência de evidência e a evidência da ausência”. Bia quis dizer que, em seu mundo, não há prova de que máscara ajude contra o Covid.

A boa vontade dos empresários que, para “ajudar o SUS”, querem primeiro vacinar a si e aos seus, oferece outro neologismo ao léxico pandêmico universal: os vacinidiotas. Acho que esses a Alemanha não tem. Nem milico que se vacina escondido. Na dúvida, anotem: “Impfstoffidiot”. No 7×1 cotidiano, pelo menos resta nosso 1.

*Publicado na Folha de S.Paulo




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