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Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

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Artigos • 04 jul, 2019

O escrete de loucos (Nelson Rodrigues)


Amigos, a bola foi atirada no fogo como uma Joana d’Arc. Garrincha apanha e dispara. Já em plena corrida, vai driblando o inimigo. São cortes límpidos, exatos, fatais. E, de repente, estaca. Soa o riso da multidão — riso aberto, escancarado, quase ginecológico. Há, em torno do Mané, um marulho de tchecos. Novamente, ele começa a cortar um, outro, mais outro. Iluminado de molecagem, Garrincha tem nos pés uma bola encantada, ou melhor, uma bola amestrada. O adversário para também. O Mané, com quarenta graus de febre, prende ainda o couro.

A partida está no fim. O juiz russo espia o relógio. E o Brasil não precisa vencer um vencido. A Tchecoslováquia está derrotada, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos. Mas Garrincha levou até a última gota o seu “olé” solitário e formidável. Para o adversário, pior e mais humilhante do que a derrota, é a batalha desigual de um só contra onze. A derrota deixa de ser sóbria, severa, dura como um claustro. Garrincha ateava gargalhadas por todo o estádio. E, então, os tchecos não perseguiram mais a bola. Na sua desesperadora impotência, estão quietos. Tão imóveis que pareceram empalhados.

Garrincha também não se mexe. É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. O juiz não precisava apitar. O jogo acabava ali. Garrincha arrasara a Tchecoslováquia, não deixando pedra sobre pedra. Se aparecesse, na hora, um grande poeta, havia de se arremessar, gritando: — “O homem só é verdadeiramente homem quando brinca!” Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está todo o Brasil. E jamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como ao imobilizar, pela magia pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos, tão mais belos, tão mais louros do que os nossos. Mas vejam vocês: de repente, o Mané põe, num jogo de alto patético, um traço decisivo do caráter brasileiro: — a molecagem.

O Hélio Pellegrino, que é poeta e psicanalista, dizia-me, outro dia: — “O brinquedo é a liberdade!” E para Garrincha, o brinquedo, no fim da batalha, foi a molecagem livre, inesperada, ágil e criadora. Varou os pés adversários, as canelas, os peitos. Não tinha nenhum efeito prático a sua jogada arrebatadora e inútil. Mas o doce na molecagem é a alegria insopitável e gratuita. E não houve, em toda a Copa, um momento tão lírico e tão doce.

Amigos, ninguém pode imaginar a frustração dos times europeus. Eles trouxeram, para 62, a enorme experiência de 58. Jogaram contra o Brasil na Suécia, trataram de desmontar o nosso futebol, peça por peça. Toda a nossa técnica e toda a nossa tática foram estudadas com sombrio élan. Sobre Garrincha, eis o que diziam os técnicos do Velho Mundo: — “Só dribla para a direita!” Era a falsa verdade que se tornaria universal. O próprio Pelé parecia um mistério dominado. Continue lendo 




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