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Artigos • 14 nov, 2019

O sonho fraudado (artigo/Zero Hora)



Quando se faz o inventário dos 100 anos da Revolução Russa, que incendiou o coração da juventude no mundo inteiro porque se baseava no poder retomado pelo povo que desbancara a aristocracia czarista, egoísta e alienada, percebe-se que as nações que provaram da poção milagrosa se dividem, muitas décadas depois, em os decepcionados, os arrependidos e os fanáticos.

Atualmente, a presença de um militante dessa causa perdida em países mais desenvolvidos é vista com a curiosidade com que se inspeciona uma peça que resistiu ao incêndio do museu. Nos países pobres, onde eles ainda desfilam com uma empáfia difícil de explicar, está a maioria dos sobreviventes desta autoflagelação, e ali se encontram os deprimidos em tratamento, e os incuráveis, ou seja, os fanáticos que envelheceram acreditando e, agora, não têm mais tempo, nem ânimo, para assumir que deu tudo errado.

E como deu! A análise comparativa dos países capitalistas com os que mergulharam na utopia por convicção (poucos) ou foram coagidos (maioria) é constrangedora, pelo menos para os que preservam intacta a capacidade de pensar por conta própria.

Convivi com logo depois que o muro ruiu, e soube, por alemães ocidentais, do esforço de reintegração das duas metades, irmãs na genética e na cor dos olhos, mas completamente diferentes na iniciativa e na paixão pelo trabalho. Logo depois da fusão, o chefe de cirurgia torácica do meu amigo de longa data, recebeu três jovens cirurgiões de Leipzig, e se confessou surpreso quando eles, imediatamente, iniciaram um movimento de reivindicação por melhores condições de trabalho, incluindo bônus por insalubridade, e aumento do valor das horas extras porque, com o sucesso do programa de transplantes naquela instituição, as operações no período da noite, sem tempo previsto para terminar, se tornaram rotina.

O regime de trabalho competitivo, que recolocou a Alemanha entre as nações mais ricas do mundo, apenas 40 anos depois de ter sido completamente destroçada, não combinava em nada com quem se habituara com a previsível acomodação que rege a vida dos que são igualmente remunerados, trabalhando ou protestando.

Quando a mãe Rússia assumiu a inviabilidade do modelo que fracassara depois de ter sacrificado milhões de vítimas inconformadas com a perda da liberdade, a máscara caiu e as chagas ficaram expostas.

O fim começou quando Miklós Németh, primeiro-ministro húngaro à época, foi à Moscou, para rogar a Gorbachev uma ajuda econômica, para restaurar a cerca elétrica que separava a Hungria da Áustria, e que, desmoronando, se transformara numa porta aberta para o ocidente e a liberdade, mas o pedido resultou em negativa sumária. Diante da resposta explícita de que, sem petróleonão tinha como continuar bancando as aparências, todas as barreiras experimentaram o efeito dominó, que levou Cuba de roldão.

Difícil é aturar que certos jovens, aparentemente poupados de descerebração, continuem defendendo uma ideologia sempre imposta com violência, e que fracassou sistematicamente em um século de tentativas.

A queda do Muro de Berlim, um dos acontecimentos mais emblemáticos do século 20, completa 30 anos neste 9 de novembro e, passado este tempo, com cada nação tentando, do seu jeito, se reerguer das ruínas do socialismo utópico, ainda se percebe a flagrante diferença de desenvolvimento que encabula os países do Leste Europeu.

Tudo bem, vamos deixar de fora as ditaduras, que, tolhendo o princípio básico da liberdade, não permitem comparações, até porque quem não entende esta diferença nada mais entenderá.

Feita esta ressalva, respeitar a decepção recatada dos velhos socialistas, que gastaram os anos dourados da juventude perseguindo um modelo ficcional de convivência, é uma questão de generosidade.

Difícil é aturar que certos jovens, aparentemente poupados de descerebração, continuem defendendo uma ideologia sempre imposta com violência, e que fracassou sistematicamente em um século de tentativas, e sigam venezuelando por aí, com ares de originalidade. Se houvesse interesse numa conclamação à racionalidade, a primeira pergunta seria esta: por que será que ninguém jamais arriscou a vida, tentando pular o muro para o lado de lá?

Por J.J. Camargo




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