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Artigos • 22 abr, 2020

Opinião: Coronavírus traz fronteiras de volta à Europa


A pandemia de covid-19 não só paralisou a globalização, mas mostrou quão fragmentada é a Europa. Não só nas diferenças entre os países, mas nos choques entre classes e gerações, opina Ivaylo Ditchev.

A coisa mais espantosa na pandemia do coronavírus é a facilidade com que fronteiras podem retornar. A metáfora de internet que utilizamos cada vez mais é a melhor descrição: um após o outro, os países europeus estão instalando um firewall com um simples clique de mouse. Aí o turismo está morto, o comércio entra em colapso, o mercado de valores perde trilhões, e a própria globalização fica paralisada.

Centenas de milhares de trabalhadores migrantes estão voltando para casa na Bulgária, Sérvia ou Romênia, para serem recebidos com sentimentos mistos. De um lado, “trazer nossos filhos de volta” tem sido um constante lamento nas últimas décadas: agora todo mundo está de volta em “seus lugares”. Do outro lado, não há empregos para se oferecer aos que retornam, sobretudo não em tempos de crise. Além disso, as economias nacionais sentirão enorme falta das quantias que eles costumavam enviar para casa.

A cerimônia de boas-vindas à pátria consiste numa triste quarentena, aplicada a todo estrangeiro, e acompanhada por um sentimento de estar preso e não poder mais sair, que quem tenha vivenciado o comunismo bem lembra.

Nesse ínterim, pessoal médico está sendo exportado para o Ocidente, a fim de ajudar em países como Áustria e Reino Unido. Alguns acham isso um escândalo, já que eles são necessitados mais do que nunca em casa; outros replicam que o Leste Europeu está atualmente menos afetado, e que este é o momento de mostrar solidariedade (e possivelmente enviar algum dinheiro para casa).

A nova fronteira entre o Leste e o Oeste adquiriu até mesmo uma dimensão médica. Segundo uma teoria, uma vacina específica contra a tuberculose que era compulsória nos Estados socialistas pode ter também um efeito protetor contra o coronavírus – comparações entre as Alemanhas Oriental e Ocidental estão a caminho.

De outro ponto de vista, mais cínico, a nova doença talvez seja o preço a pagar por sistemas de saúde melhores no Ocidente, que mantêm a população viva por mais tempo. Atualmente, a Itália e a Espanha ostentam tanto a maior expectativa de vida da Europa – 83 anos – quanto a mais alta taxa de mortalidade.

Populistas como Donald Trump, que basearam suas políticas numa ideologia de fronteiras antiglobalista, estão radiantes; outros, como Viktor Orbán, na Hungria, lucram com a crise para consolidar seu regime autoritário. Estranhamente, todos os políticos parecem subir nas enquetes, quer estejam gerindo bem a pandemia, quer não: tanto Angela Merkel quanto Trump, tanto Giuseppe Conte quanto Moon Jae-in. Sabe-se que em tempos de crise os cidadãos se congregam em torno de seus líderes: seu apoio cairá quando a crise houver passado, não enquanto dure.

No entanto, as fronteiras parecem dividir o próprio tecido nacional. Episódios racistas com cidadãos de aparência asiática no Ocidente podem ser apenas um prelúdio brando do que está por vir. Na Bulgária, alguns estão exigindo que se isolem os guetos dos ciganos rom, onde se pensa – erroneamente – que o contágio está crescendo: como sempre, repulsa racista se combina com argumentação pseudocientífica. Se a etnia nômade for isolada, outros países balcânicos seguirão o exemplo com prazer.

Quanto ao ex-ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, ele colocou a culpa do vírus nos imigrantes africanos, embora seja óbvio que os turistas e as elites globais tiveram mais culpa no alastramento do que populações pobres confinadas a suas aldeias natais. O próprio nome da doença, teimosamente usado pelo cidadão comum e pelo presidente dos Estados Unidos, implica etnização: o “vírus chinês” é culpa de nossos inimigos, os comedores de morcego, e não tem nada a ver conosco mesmos.

A fronteira mais preocupante, embora invisível, foi traçada entre as gerações. A doença dolorosamente põe jovens e idosos em oposição, pois os últimos é que parecem ser os únicos seriamente ameaçados por ela. Assim, cresce uma sensação de que a economia mundial está sendo sacrificada para salvar as vidas de gente que, de qualquer jeito, estaria condenada a morrer em breve. Não seria melhor trancafiá-los em algum lugar e deixar os demais adquirirem “imunidade de rebanho”?

Tal decisão parece moralmente impossível, por ora. No entanto, a crise exige que se reconsidere o pacto entre as gerações. Considerações éticas estão sendo abaladas por brutais dados quantitativos: os gastos de saúde com os maiores de 65 anos são cerca de três vezes maiores que os com todos os grupos mais jovens reunidos.

Além disso, os mais idosos apresentam uma ameaça crescente para o sistema de aposentadoria, já que menos trabalhadores jovens substituem mais aposentados. Os baixos níveis de natalidade – catastroficamente baixos na Europa Oriental – são também culpa da geração nascida entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 1964, apelidada baby-boomer.

Há quem fale de uma “bomba-relógio da aposentadoria”, de uns 400 trilhões de dólares que estarão faltando em 2050, em todo o mundo, e que provavelmente destruirá a economia como a conhecemos. Mas o aspecto mais dramático do choque de gerações continua sendo a degradação da natureza, causada pelos que hoje aproveitam tranquilamente suas aposentadorias.

E talvez isso ainda não seja tudo: estamos presenciando o crescente conflito de classes entre ricos e pobres, tensões entre o mundo industrializado e o em desenvolvimento, entre Estados democráticos e autoritários.

As fronteiras reapareceram subitamente em toda a Europa. Há alguma esperança que também venham a desaparecer da noite para o dia?

Ivaylo Ditchev é professor de antropologia cultural da Universidade de Sófia, Bulgária. Ele já lecionou como professor convidado na Alemanha, França e Estados Unidos, entre outros países.

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