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Blog do Manoel Afonso

Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

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Artigos • 22 jun, 2020

“A parte mais chata de ficar em casa é não sair de casa”



Acorda, café, brinca, desenho, almoça, filme, filme, brinca, banho, janta, brinca, dorme. 100 dias. Respira. Banho de sol xadrez. Passeio de carro. Ver parentes – só de longe, sem abraços. Amigos imaginários. Não quero brincar sozinha. Corona chato. Por que não posso ir lá fora? Está difícil entender o mundo aos 54 anos? Aos 39? E aos 75? Imagine aos 3…

Pois se a vida mudou completamente de uma hora para a outra, pelo menos você leu no jornal a explicação e entendeu – quer concorde ou não. A cidadã de 3 anos sabe sobre o vírus. Foi informada das medidas de restrição. Recebeu todas as orientações sobre os cuidados com os vulneráveis. Tem a resposta na ponta da pequena língua sobre o motivo de não poder ir à casa daquele amiguinho que tanto gosta. Mas não entende.

Pequenos prazeres: perceber que as crianças tecnológicas, ligadas nos 220v, filhas do ritmo alucinante dos anos 2010, gostam na mesma intensidade dos frenéticos filmes atuais e dos vagarosos clássicos animados que logo chegarão aos 100 anos desde seu lançamento. A risada é vigorosa tanto com a piada sobre o personagem que invade a internet e não entende como funciona um leilão no Ebay quanto na cena arrastada de vários minutos em que o anão simplesmente… espirra.

Se todos estamos envelhecendo meses em dias de preocupação e desgaste, eu, várias vezes por dia, volto a ter 8 anos. Sou transportada à minha infância com filmes, livros, músicas e brincadeiras. Qual foi a última vez que você brincou de esconde-esconde com um amigo? A minha foi ontem. E hoje pintei com tinta guache.

Preciso fazer um agradecimento especial às fantasias. Provavelmente tenho mais dinheiro investido nelas do que no tesouro direto. Mas garanto que controlo o retorno da minha aplicação e cada uma já se pagou umas 15 vezes.

Voltemos às fantasias. Elas nos transportam para outras realidades – todas elas sem Covid-19, preciso dizer. Sinto muito se vocês aí estão há três meses encarando as mesmas velhas paredes e se sentando no mesmo sofá. Eu estive na França do século XVII, na Inglaterra em meados dos 1800, nas Arábias do futuro e até num reino gelado norueguês.

Você está se perguntando quando será o próximo grande acontecimento da sua vida? Quando vai se arrumar e se preparar para um casamento, uma festa de aniversário, um pitch importante no trabalho… Aqui temos um grande acontecimento quase todo dia. Pelo menos é o que podemos entender pelo entusiasmo dos participantes quando recebem um convite para ajudar a fazer um bolo. Ou abrir um livro novo que chegou pelos Correios. Ou para colocar bandeirinhas de festa junina pela casa.

Existe rotina, mas não existem dias iguais. Praticamente nada é feito exatamente do mesmo jeito duas vezes. Quase nada pode ser igual – a não ser o desenho a ser repetido infinitas vezes, muitas vezes em sequência. Se quase sempre é calmaria, a tempestade nunca dá aviso – não existe aplicativo de celular com esse tipo de previsão, ainda. É o dia em que nada funciona. Nem os best-sellers desse público específico têm saída. Tudo está errado.

O alimento preferido é rejeitado. A brincadeira que mais faz sucesso causa repulsa. Todo um catálogo de Netflix, Amazon Prime e Youtube combinados não resolvem o tédio. Se não dá para mandar a cidadã passear – maldito corona – só resta o colinho. Esse não falha nunca.

Marido está enjoando da cara da mulher. (E vice-versa). Filho adolescente cada dia mais e mais trancado no quarto. Mas a filha pequena quer a nossa companhia. O. Tempo. Todo. Sagrados momentos de introspecção ao trono são uma quimera. Esqueça de trancar a porta e terá um acompanhante por ali. Lembre-se e ouvirá seu nome insistentemente até o serviço terminar.” (
Por Marcela Mendes

Fonte – Gazeta do Povo.




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