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Blog do Manoel Afonso

Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

Crônicas

Crônicas • 17 jan, 2021

São só palavras (Lya Luft)


A vida, como a ficção, é um teatro de desatino

Renuncio às palavras e às explicações. Ando pelos contornos, onde todos os significados são sutis, são mortais.

Não quero perder o momento belo. Quero vivê-lo mais, com a intensidade que exige a vida: desgarramento e fulguração. Então me corto ao meio e me solto de mim: a que se prende e a que voa, a que vive e a que se inventa. Duplo coração: a que se contempla e a que nunca se entende, a que viaja sem saber se chega – mas não desiste jamais.

A vida chega em silêncio: desenovela reflexos, interroga a esfinge, que responde ou nega num espelho baço. (A resposta nunca é clara nem é pequena.) Não é a mim que vejo: é ao outro, num misto de incerteza e esperança de que não seja mais um rosto virado, uma boca cerrada – mais um desgosto a cada passo.

Desejo, sonho e medo, o amor é salto sem rede entre a razão e a magia. E só assim vale a pena.

Eu no espelho: atentas, nós duas nos observamos para além da imagem. Estendemos a mão, tocamos esse congelado rio, sabendo: se eu mergulhar daqui, e do seu lado, ela, vão se fundir num sopro nossos rostos, todos os meus sonhos e os anseios dela. Mas nenhuma se atreve. Continuamos sozinhas nesse mundo de reflexos, eu e ela incompletas, nuas e sós.

Tenho medo das águas do destino a invadirem o que penso e faço, numa linha de infinda contradição. Eu sou assim: quero fugir mas chamo, quero ficar mas me assusta não ter em mim nada seguro e certo.

Nunca receio a alegria, para a qual todos os milagres são normais. Mas, quando tarda quem amo, meu coração fica exposto e aberto. E mesmo assim eu persisto, e ainda assim eu espero como criança sozinha atrás do muro.

Era uma vez um corredor de amores, e uma casa ancorada no tempo da vida para não naufragar.

Era uma vez viagens e descobrimentos. Era uma vez uma infância dourada e um quebra-cabeça possível de armar.

Quando perdi quase tudo, descobri que a dor não era maior do que o sonho. Quando esqueci o caminho, vi que o horizonte ficava do lado errado.

Quando só o meu rosto sobrava em cada espelho (e nada do lado de cá), juntei desalento e desejo e me reinventei com carinho. (Agora pareço comigo antes de o amor ser cancelado.)

A vida, como a ficção, é um teatro de desatino. Meus personagens: amantes, suicidas, sonhadores, seres rastejantes, criaturas aladas, simples humanos – crianças e seus segredos. O bem, o mal, o riso, o esgar, a procurada morte, a sorte, a sombra.

(Na beira do palco, como estrelas, penduro palavras: esse é o meu destino.)

Quando pareço ausente, não creias: hora a hora meu amor agarra-se aos teus braços, hora a hora meu desejo revolve teus escombros, e escorrem dos meus olhos mais promessas. Não acredites nesse breve sono; não dês valor maior ao meu silêncio; e, se leres recados numa folha branca, não creias também: é preciso encostar teus lábios nos meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo: palavras são meu jeito mais secreto de calar.




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