Como em geral acontece, tive duas avós: a paterna morava numa casa ao lado da nossa, a outra, a quem eu chamava oma, num casarão no centro da cidade. Embaixo ficavam o tabelionato de meu avô, depois salas, cozinha. Uma grande escada subia para os quartos.

A mim interessava aquele que tinha sido de minha mãe menina e suas irmãs. Quando tinha tempo, a avó abria a tampa de um baú sob a janela, onde se guardavam roupagens de crianças de antiquíssimos carnavais. O farfalhar dos tafetás, a cócega das plumas, o oblíquo olhar das máscaras acendiam a fogueira da minha imaginação. Era meu baú dos tesouros.

Não consigo descrever a alegria de remexer tudo aquilo: o tempo era como um peixe de vidro de repente na minha mão, concreto. Era meu. Estavam ali os momentos vividos de minha mãe menina, era o estranho-íntimo, onde eu penetrava quase a medo.

Certa vez, bem no fundo dessa mesma arca encontrei embrulhado em papel de seda amarelado algo ainda mais precioso, e estranho. Uma trança grossa e comprida de cabelo castanho com tons de cobre, lustroso como se tivesse acabado de ser lavado e secado ao sol.

Corri para a avó:

— O que é isso, o que é isso?

Eu estava ofegante de excitação.

— Olha só, eu até tinha esquecido.

— Mas é cabelo, isso aí, não é? De boneca?

— É a trança de sua mãe que cortei quando ela tinha uns nove, dez anos. Veja só…

Minha mãe já contara do dia em que lhe tinham cortado os cabelos, que usava até a cintura. Estava assim em algumas fotos muito antigas, séria como se o peso da cabeleira a incomodasse. Naquele tempo ela era muito magrinha, e o médico tinha aconselhado a cortar a cabeleira imensa, “parte da energia do corpo se gasta lá”.

Minha avó com tesoura de costura lhe cortara tudo, deixando-a apenas uma menina comum, com cabelos comuns até os ombros. Em lugar de se entristecer, minha mãe tinha ficado contente: era uma criança como seria mulher, alegre e prática, aparentemente sem complicações maiores. A avó me deixou levar a trança para casa, e minha mãe achou graça de terem guardado aquilo.

A dona daqueles cabelos lustrosos viveu em mim, alimentada com histórias que dela me contavam: de quando subia em árvores, jogava bolinha de gude na calçada com os irmãos, roubava uvas da parreira e (como eu, como eu!) não gostava da escola.

Mas podia parecer um anjo num retrato, em seu vestido de tule branco, sentada numa poltrona debaixo do pinheiro enfeitado que girava enfiado numa pinha de ferro, sobre uma grande caixa de música que tocava melodias de Natal.

Aquele esboço da mulher de quem eu seria filha era mais meu do que dela, desinteressada daquele passado todo. Assim, por um tempo, convivi com minha mãe pequena reinventada, com seu rosto oval e pele azeitonada, os olhos alegres e sua cabeleira intemporal.

Sem o saber, essa mãe-menina foi minha alegre amiga imaginária.

Fonte – Zero Hora (RS)