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Artigos • 27 dez, 2017

DEUS, SEGUNDO RUBEM


Celio Heitor Guimarães

A proximidade do Natal, data que simboliza o nascimento de Jesus, filho de Deus, fez-me lembrar de Rubem Alves. Como pastor presbiterano, Rubem pregou, durante anos, a “palavra de Deus”. Foi fiel aos mandamentos bíblicos e cumpriu, com dedicação e obediência, os ensinamentos recebidos no seminário. De repente, deu-se a ruptura.

Rubem achou que havia algo errado, que fora enganado e que enganava os outros. Passou a duvidar daquilo que doutrinava. E a sentir medo do Deus do Velho Testamento. “Se Deus é todo amor” – conjecturava –, “não pode ter, na eternidade, uma câmara de torturas sem fim, em que as almas sofram por pecados cometidos no tempo”.

A frustração levou-o a romper com a religião. “Não posso respeitar uma religião que, para se impor, amordace o pensamento” – frisou, sustentando: “Eu preciso não ter religião para amar a Deus sem medo, com alegria e, principalmente, sem nada pedir. Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem de Deus”.

Rubem afastou-se, então, de tudo: da pregação, da teologia e das igrejas. E passou a acreditar em Deus do jeito como acreditava nos jardins, nas cores do crepúsculo, no perfume da murta, na beleza de uma sonata, na alegria da criança que brinca, na beleza da um olhar…

Não obstante, mesmo depois de tornar-se o pastor que deixou de acreditar no Deus que tanto apregoara, foi capaz de produzir a melhor definição de Deus que já vi ou ouvi.

Nas vestes de Mestre Benjamin, um contador de estórias – dos tempos antigos, em que as noites eram escuras e silenciosas, somente as estrelas e a Lua iluminavam os céus e, na terra, podia ouvir-se o barulho do vento, o piar das corujas e uivo de algum lobo –, Rubem procurou responder a questão divina.

Mestre Benjamin iniciou por indagar aos presentes à sua tenda, que se encontrava lotada como de costume, quantas pessoas ali estavam pensando no ar. Ninguém levantou a mão. E ele:

– Ninguém está pensando no ar. Ninguém nem sabe direito o que é o ar. E, no entanto, todos nós o estamos respirando. O ar é a nossa vida e não precisamos pensar nele e nem dizer o seu nome para que ele nos dê vida. Mas o homem que se afoga no fundo das águas só pensa no ar. Deus é assim. Não é preciso pensar nele e pronunciar o Seu nome. Ao contrário, quando se pensa nele o tempo todo é porque está se afogando…

O sábio fez uma pausa. E ante o silêncio da plateia, continuou:

– Deus é como o vento. Sentimos na pele quando ele passa, ouvimos a Sua música nas folhas das árvores e o Seu assobio nas gretas das portas. Mas não sabemos de onde vem nem para onde vai. Na flauta, o vento se transforma em melodia. Mas não é possível engarrafá-lo. No entanto, as religiões tentam engarrafá-lo em lugares fechados a que elas dão o nome de “casa de Deus”. Mas, se Deus mora numa casa, estará ele ausente do resto do mundo? Vento engarrafado não venta…

“Ouve-se, então o pio distante de uma coruja”. E Mestre Benjamin foi em frente:

– Deus é como o pássaro encantado que nunca se vê. Só se ouve o seu canto… Deus é uma suspeita do nosso coração de que o universo tem um coração que pulsa como o nosso. Suspeita… Nenhuma certeza. Fujam dos que têm certezas. Eles trazem gaiolas nas mãos. E os pássaros que têm presos nas suas gaiolas são pássaros empalhados. Ídolos.

– É preciso esquecer os nomes de Deus que as religiões inventaram para encontrá-lo no assombro da vida. Não precisamos dizer o nome “rosa” para sentir o seu perfume; não precisamos dizer o nome “mel” para sentir a sua doçura…

E completou:

– Há pessoas que se dizem religiosas por acreditar em Deus. O que vale isso? O demônio também acredita e estremece ao ouvir o Seu nome. A pergunta não deveria ser “Você acredita em Deus”, mas “Você se comove com a beleza?” Deus nunca foi visto por ninguém, porque ele não quer ser visto. Ele se mostra na experiência da beleza.
Quer ver Deus? Veja a beleza do sol que se põe. Quer ouvir Deus? Entrega-se à beleza da música. Quer sentir o cheiro de Deus? Respire fundo o perfume do jardim. Quer saber como é o coração de Deus? Empurre uma criança num balanço, porque Deus tem o coração de criança.

Naquela noite, todos foram dormir um pouco mais felizes. No céu as estrelas brilhavam como nunca. Mas ninguém quis falar nada. Eles sabiam, porque aprenderam com mestre Rubem Alves, que “só se deve falar quando a fala melhora o silêncio”.




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