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Artigos • 27 mar, 2021

A covid pede ordem unida aos brasileiros, escreve Thales Guaracy


Brasil ainda naufraga na pandemia  –  Ritmo de mortes diminui no mundo  –  Enquanto aqui está na ascendente  –

Não adianta culpar só Bolsonaro

Vítima da covid é enterrada no Cemitério do Campo da Esperança, em BrasíliaSérgio Lima/Poder360 – 12.mar.2021


22.mar.2021

Nós, brasileiros, nos acostumamos a pensar que estamos em um país único no mundo, não apenas pelo nosso vasto e fértil território, como pela nossa brava gente. Brava por ter sobrepujado e povoado esta terra antes inóspita, encontrada pelos primeiros navegantes cheia de cobras, mutucas e índios antropófagos.

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O que fizemos desta terra realmente foi único, para o bem e para o mal. A maneira de enfrentar crises, que leva a grandes sucessos ou grandes fracassos, revela muito sobre a personalidade das pessoas e também das Nações. E, quando o mal prevalece, é preciso rever não só as políticas, como o nosso caráter, que está na essência dos erros historicamente persistentes.

Para quem ainda se pergunta por que o Brasil não consegue realizar a velha promessa do país do futuro, o gigante adormecido, e viver de crise em crise, de miséria em miséria, enquanto alguns se locupletam, a covid-19 não poderia ser mais didática. 

Somos hoje o único país do mundo que naufraga diante da pandemia. Segundo a OMS, em dados divulgados semana passada, um a cada quatro mortos hoje pelo coronavirus no mundo é brasileiro.

O número de mortes diminui nos Estados Unidos, no México, na França. No Brasil, é ascendente. A demora na vacinação e a combinação de vacinados com a promiscuidade geraram aqui variantes do vírus que são uma nova ameaça planetária.

Afinal, o que há de errado com o Brasil? Não adianta culpar o presidente Jair Bolsonaro, instalado na cadeira de chefe da Nação. Ninguém precisa seguir o presidente, só porque ele gosta de andar sem máscara. A verdade é que ele é produto desta mesma sociedade mal resolvida que é um perigo para si mesma.

Não adianta igualmente dizer que a responsabilidade por tudo o que acontece no Brasil é da miséria e que as pessoas não têm condições de parar de trabalhar para fazer lockdown.

Pela OMS, ficamos sabendo que as mortes por Covid na Etiópia, clássico exemplo de miséria mundial, caíram 21% na primeira semana de março. Na Nigéria, país mais populoso da África, 20%. Como esses países, considerados pobres, conseguem isso, e a gente, não?

O Brasil esquece que as Nações precisam ter uma ordem unida. No conceito de origem militar, a ordem unida é uma formação de marcha, nas paradas e na tropa, que dá harmonia e cadência ao conjunto. No Brasil, prevalece a mentalidade de cada um por si. E o conjunto é um desarranjo só.

Nosso comportamento, fruto da desagregação coletiva, é pernicioso. Poucas coisas, como a seleção de futebol, unem os brasileiros. Porém, quando a seleção perde, é também execrada como uma vergonha nacional. O brasileiro só gosta do Brasil na vitória.

O individualismo brasileiro atravessa toda a sociedade, da elite ao operário. Diante da crise econômica, poucos veem que as soluções para o progresso são tão coletivas quanto individuais. Na saúde pública, a mesma coisa. Porém, é na crise, ou nas derrotas, que um país mais precisa de união.

Na maioria dos países democráticos, quando um presidente é eleito, ele governa para todos, incluindo os que perderam. Aqui, em vez de buscar a ordem unida, as lideranças procuram destruir, vingar-se ou excluir os opositores, sem considerar toda a Nação.

Os brasileiros guardam muito de nossos antepassados tupinambás, que na guerra não faziam prisioneiros, prática adotada pelo exército imperial, que preferia degolá-los.

Daí, a meu ver, vem a mentalidade do brasileiro de jamais aceitar uma derrota. Num país onde a guerra era vitória ou a morte, não há segundo lugar, não há a hipótese de não ser o vencedor.

No Brasil, os vencedores vivem. Os derrotados são os mortos. Ninguém aceita o segundo lugar, porque num país assim, ele não existe. Não existe também proteção para os desvalidos. Os índios sacrificavam os recém nascidos incapazes, porque não sobreviveriam sozinhos. Para eles, apenas os guerreiros sobreviviam. Só que os índios foram dizimados no Brasil colônia por gente ainda mais cruel. Hoje, isso é apenas barbárie.

Mudar essa mentalidade de selvageria e desunião é uma tarefa monumental. Pensar em toda a coletividade e no bem comum é uma falha histórica nacional. Estamos acostumados à divisão da sociedade brasileira entre os beneficiários do Estado e os excluídos em geral.

Faltam ao Brasil lideranças capazes de governar para todo o país e colocar a coletividade em primeiro lugar. Em vez de dividir, criar a ordem unida. Não como ditadura, civil ou militar, e sim como liderança positiva, em torno de causas  coletivas, capazes de nos colocar ao lado de países de primeiro mundo, que se movimentam em torno da identidade de nação.

A ordem unida, sabemos, é mais facilmente alcançada em países com experiência de guerra, em que ela se impõe, por saberem o que é preciso fazer em tempos de extrema necessidade. Países destruídos por conflitos, como os europeus após a Segundo Guerra, se reergueram do nada e construíram mais progresso nos últimos 100 anos que o Brasil, com toda sua riqueza natural e a paz que nos proporcionou o isolamento geopolítico desta terra tropical.

Nossa desunião, causa do nosso atraso, se reflete nas nossas instituições, que mandam sinais contraditórios e controversos e acabam tumultuando a si mesmas e todo o país. É o que estamos experimentando agora, com risco para o sistema democrático, duramente construído, e que deveria ter sido o início de uma recivilização do Brasil.

A covid-19 bem poderia ser considerada uma guerra contemporânea, capaz de criar essa união, do presidente aos que hoje integram o movimento dos sem-máscara. Estes ostentam o negacionismo como prova de que não têm de obedecer às demandas coletivas e sustentam o direito de agir por conta própria, em detrimento da coletividade.

O resultado está aí. Contudo, ele bem pode servir de lição para eliminarmos a cizânia e enfim partir para um futuro construtivo, capaz de acabar com o círculo dos nossos vícios, que só levam à desagregação e, com ela, ao atraso.

THALES GUARACY, 55 anos, é jornalista e cientista social, formado pela USP. Prêmio Esso de Jornalismo Político, é autor de livros como “A Conquista do Brasil”, “A Criação do Brasil” e “O Sonho Brasileiro”, entre outros. Pertence ao board do Projeto Condorcet, plataforma colaborativa global para o desenvolvimento da democracia na era digital. Escreve semanalmente para o Poder360, sempre às segundas-feiras.

 




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