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Artigos • 01 dez, 2018

A ferro e fogo (Artigo)


Na carta em que relata a chegada das caravelas portuguesas à América, Pero Vaz de Caminha escreve que “o arvoredo é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem, que não se pode calcular”. O escrivão da armada se referia à mata atlântica.

Os lusitanos tiraram do mato palmito, lenha e os braços de uma cruz. Comeram, se aqueceram e ouviram a missa. Foram aos confins da floresta para dilatar a fé e o império. Cinco séculos depois, não há mais mata.

“Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e seus Vestígios” (ed. Olhares, 344 págs.) documenta a destruição. Com gravuras, telas, desenhos, fotos e textos, o biólogo Ricardo Cardim expõe o furioso avanço da civilização sobre a selva.

Dos 150 milhões de hectares da mata nos dias de Caminha, restaram 12% —espalhados em 245 mil mirrados fragmentos. Estão desfigurados porque 70% desses caquinhos ficam a 250 metros de campos, sujeitos ao “efeito de borda”: ventos, estradas, fumaça, lixo, homens.

A mata atlântica formou um sistema mais complexo que seus congêneres no hemisfério Norte. Os invernos, breves e amenos, e as chuvas fartas fizeram com que ela tivesse mais espécimes vegetais e animais. Elas formaram uma teia interdependente, intrincada e tênue.

Por depender do balanceamento de zilhões de seres vivos diversos, a mata não teve como afrontar a expansão da espécie humana da era da dominação burguesa. É o que conta “A Ferro e Fogo”, o livro clássico de Warren Dean que historia o féretro da floresta.

“Remanescentes” dá concretude a esse processo biológico e mercantil. Ricardo Cardim foi a baús perdidos em fazendas, a arquivos e bibliotecas. Saiu a campo e fotografou o espólio da hecatombe vegetal. Seu fio de Ariadne visual —um achado— são os gigantes da mata.

Está no livro, em todo seu esplendor, o Jequitibá do Brejão, de Campinas. Com um tronco de 20 metros de circunferência, o notável jequitibá foi o mais alto da mata. Agora, a maior árvore paulista é a de Natal, no Ibirapuera, que se inaugura neste sábado.

O impulso à morte da mata veio de fora. O Brasil é o único país no mundo cujo nome deriva de uma mercadoria vegetal destinada ao mercado: o pau-brasil, do qual se tirava tintura vermelha. Desde então, a mata atlântica foi consumida para servir de combustível para o progresso.

A floresta veio abaixo para que se plantasse cana, café e capim para o gado. Virou lenha para usinas, locomotivas e navios. Foi matéria-prima da Southern Brazil Lumber and Colonization, de capital americano, a maior madeireira da América Latina do século 20.

Nas mesmas décadas, caçadores de São Paulo pagavam impostos anuais sobre a venda de 250 mil peles de animais. Somando a caça ilegal, estima-se que meio milhão de mamíferos da mata fossem mortos  por ano.

Na década de 1970, perguntaram a Rainor Grecco, o madeireiro que derrubou boa parte da floresta do Espírito Santo, se ele pensava na consequência do que fazia. Ele respondeu: “A consequência é o lucro”.

“Remanescentes” tem papel cuchê, capa dura e custa R$ 150. Parece um desses livrões que se põe na sala para arrotar riqueza e requinte. Nada mais equivocado: ele exibe o que se passou, se passa e se passará. A Amazônia de amanhã será a mata atlântica de hoje. Seremos Cubatão.

Mario Sergio Conti

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