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Artigos • 28 jan, 2021

“Fura fila” da vacina: o perigo de suprimir trecho da Lei de Improbidade


Agentes públicos cometem abusos  –  Congresso quer impedir punição

O prefeito de Guaribas (PI), Joércio de Andrade (MDB), é vacinado em posto de saúde da cidadeReprodução/Twitter

FARINHA POUCA, MEU PIRÃO PRIMEIRO! “FURA FILA” DA VACINA: O PERIGO DE SUPRIMIR O ARTIGO 11 DA LEI DE IMPROBIDADE

Nos últimos dias e em diversos pontos do Brasil surgiram notícias estarrecedoras de que agentes públicos responsáveis pelo recebimento das poucas e insuficientes doses de vacina contra a covid-19 estariam desviando unidades do imunizante.

As denúncias sinalizam deslizes generalizados no cumprimento das priorizações estabelecidas objetivamente no Plano Nacional de Vacinação –que deveriam beneficiar exclusivamente idosos e profissionais que atuam no front emergencial da saúde.

As iniquidades de um país continental de cultura coronelista como o nosso, somadas ao individualismo do pós-modernismo mostram-se elementos bem vivos, assim como o dito popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

No Amazonas, apontou-se o desaparecimento misterioso de 60.000 doses de vacina e, na sequência, pessoas abastadas publicaram imagens nas redes sociais, vangloriando-se de já estarem imunizadas. No Pará, também são noticiadas violações às prioridades, que levaram o Ministério Público a organizar campanha de conscientização e denúncias, assim como no Paraná, no Distrito Federal e em diversos outros Estados.

Em Candiba, na Bahia, das 100 doses recebidas, uma delas foi aplicada no prefeito. Em Itabi –Sergipe, município de 5.000 habitantes, o prefeito de 46 anos foi a 1ª pessoa a receber vacina. Em Jupi –Pernambuco, a secretária da Saúde determinou que ela e um fotógrafo fossem de imediato imunizados, mesmo havendo apenas 136 doses para todos.

Em Pombal, na Paraíba, o prefeito também foi de imediato imunizado, assim como o vice-prefeito de Juazeiro do Norte, no Ceará. E nesses 2 casos mais uma agravante –ambos são médicos. Nenhum desses casos da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Paraíba ou Ceará se enquadra nos critérios objetivos de prioridade estabelecidos.

Acontecimentos estarrecedores e, ao mesmo tempo reveladores do egoísmo e insensibilidade por parte de agentes públicos que fazem, sem cerimônia, uso abusivo do poder, que, em tese, poderiam ser responsabilizados por peculato, nos termos do Código Penal.

No entanto, este talvez seja um dos momentos em que a Lei de Improbidade Administrativa, em seus quase 29 anos de vigência, justifique na plenitude sua existência. Uma lei que veio para punir rigorosamente agentes públicos que descumprem os deveres inerentes ao exercício de suas funções –violando princípios da administração pública, causando-lhe danos ou enriquecendo indevidamente às suas custas.

Percebe-se agudamente que esta lei, de fato, é muito importante socialmente, que foi criada pelo Congresso Nacional para proteger a sociedade e o patrimônio público, tanto que alguns destes casos acima mencionados já tiveram encaminhamento graças à Lei de Improbidade –por meio da qual a punição se concretiza, diversas vezes, de forma muito mais efetiva do que através da Lei Penal.

“Furar fila”, desviando doses da vacina, é típica hipótese de violação de princípios da administração pública –moralidade, legalidade e impessoalidade, prevista no artigo 11 da Lei.

Entretanto, em plena pandemia, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), em meio a um debate visando fazer saudáveis atualizações na lei de Improbidade Administrativa (8429/92), dentro da discussão do PL 10887/18, propôs no final do ano que este artigo 11, que o pune os “fura fila”, as “carteiradas”, os atos de nepotismo e tantas outras barbaridades cometidas no Brasil, fosse sumariamente suprimido.

Ou seja, Zarattini, propõe que atos graves de abuso de poder se tornem permitidos, aceitáveis, legais. Que fiquem impunes. Isto sem ter havido qualquer audiência pública ou debate em torno de seu substitutivo, que não foi protocolizado, mas que caminhou oficiosamente, de mão em mão, em busca da articulação em prol da canhestra aprovação, na contramão do interesse do país. Há muitos pontos no substitutivo de Zarattini terrivelmente nefastos do ponto de vista da sociedade e do combate à corrupção.

Neste cenário triste e sombrio no qual vivemos, em que a perspectiva de vacinação para toda a sociedade é longínqua e incerta ainda, em que o próprio presidente da República incentiva a facultatividade da vacinação, contra as evidências científicas contrárias; em que o Ministério da Saúde não adquiriu seringas nem agulhas para que se viabilize a vacinação, torna-se ainda mais agudo e complexo o fato de dispormos de poucas doses para muitos e os desvios concretamente constatados, que precisam ser reprimidos.

Será necessária austeridade fiscalizatória e energia, especialmente pelo Ministério Público, e muitas doses de coragem, para que prevaleça o interesse público frente ao abuso do poder. E para lutar incessantemente no Congresso para que o despropositado substitutivo de Zarattini não avance: o que já está complicado pode ficar insuportável, se sequer tivermos suporte legal para punir aqueles que desrespeitam os valores primordiais da república e o povo, sem cerimônia.

Roberto Livianu, 52, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF. Escreve para o Poder360 semanalmente, às terças-feiras.




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