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Artigos • 14 maio, 2022

Polarização à brasileira


(por Demétrio Magnoli)

No país, essa é forma de descrever a dinâmica do antipetismo

“A hiperfragmentação e o baixíssimo partidarismo político no Brasil mascaram a escalada da polarização”, escreve Marcus Melo (Folha, 8/5). Segundo a sua análise, aguda e instigante, EUA e Brasil seriam casos paralelos de “recrudescimento recente” da polarização política. A tese, contudo, transita por um argumento que contém a semente de sua própria refutação: por aqui, predomina um “partidarismo negativo assimétrico, envolvendo apenas o PT”.

Polarização, na política, é o fenômeno de cisão binária da sociedade. Classicamente, tende a verificar-se em sistemas bipartidários, como o dos EUA, mas pode ocorrer em sistemas multipartidários marcados pelo antagonismo entre dois partidos principais. No Brasil, polarização é termo ilusório: uma forma de descrever (e ocultar) a dinâmica do antipetismo.

A tormenta política do quadriênio 2014-2018 arrastou o PSDB à irrelevância, mas não teve efeito similar sobre o PT. Nesse sentido, serviu para provar que o PT é o único partido nacional com extensas bases sociais. A força aparente dos candidatos tucanos que alcançaram o segundo turno entre 2006 e 2014 não exprimia uma adesão ideológica ao PSDB, mas veiculava o antipetismo. Bolsonaro chegou ao Planalto sob o impulso da mesma correnteza, convertida em incontrolável torrente.

O antipetismo não é um fenômeno inscrito na natureza da sociedade, ou seja, no suposto caráter conservador, reacionário ou preconceituoso da “classe média”. Tal diagnóstico “sociológico”, alegação ritual do PT na hora das derrotas, não passa de um álibi conveniente para evitar a crítica política interna. O petismo esculpiu o antipetismo ao longo de seus 13 anos de poder.

A cisão foi plantada pela narrativa de uma nação dividida entre “o povo” (representado pelo PT e seus aliados) e “a elite de 500 anos” (representada por todos os outros). Nessa linha, o PT difundiu a noção de que seus críticos são indivíduos intelectualmente primitivos ou, simplesmente, mal-intencionados.

A estratégia discursiva revelou-se eficaz, num sentido perverso, amalgamando o campo adversário. Em 2018, para não avalizar o PT, lideranças visceralmente avessas a Bolsonaro, como Fernando Henrique e Ciro Gomes, escolheram uma neutralidade parcial. Erraram, sim, mas justamente por reagir à lógica binária petista.

No intervalo 2014-2018, intensificou-se a antipolítica, não a polarização. Sob o impacto dos escândalos (reais) de corrupção e da campanha político-judicial do Partido dos Procuradores recrudesceu a rejeição geral à elite política e aos partidos. O PT, único partido fortemente enraizado, experimentou a sedimentação social do antipetismo. O bolsonarismo, erupção de uma extrema direita singular na história brasileira, nasceu naquela lagoa poluída.

Lula cartografou corretamente a encruzilhada política. Num só lance, renunciou à narrativa sectária do “golpe do impeachment” e articulou a aliança com o “neoliberal golpista” Alckmin. Por essa via, delineou uma campanha apoiada no conceito de frente democrática contra o bolsonarismo. A operação estratégica destina-se a empurrar o antipetismo para a redoma da ultradireita.

Hábitos arraigados prendem o presente ao passado. O sectarismo petista manifestou-se na carta de resistência a Alckmin firmada por líderes do partido e ressurge em declarações anacrônicas do próprio Lula sobre economia e política externa. O discurso ensaiado do ex-presidente no lançamento oficial da chapa, mesmo evitando as armadilhas mais evidentes, concentrou-se na celebração de seus governos, enviando a mensagem equivocada de que o futuro será a repetição de um filme antigo.

Bolsonaro nada tem a mostrar. Seu Plano B, o triunfo eleitoral, e seu Plano A, o golpe, dependem exclusivamente da manipulação do antipetismo. Lula precisa alinhar seu discurso ao conceito embutido na aliança com Alckmin.

*Publicado na Folha de S.Paulo




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