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Artigos • 18 out, 2023

Por que o debate sobre Israel-Palestina está tão inflamado no Brasil


(por Wilson Gomes, na FSP) –

Neste conflito, os depósitos de racismo antissemita e islamofóbico são um reservatório imenso de símbolos e afetos

Quem estuda o debate público brasileiro não tem paz. A transformação digital do ativismo e da deliberação pública no início da década de 2010, juntamente com o repentino aumento do interesse dos brasileiros na política e na politização de qualquer assunto, principalmente após as mobilizações de 2013, causaram uma mudança significativa na forma como os tópicos de interesse público são discutidos.

Os teóricos da democracia deliberativa louvariam o aumento dos envolvidos na “troca pública de razões” depois de décadas de apatia, desinteresse e cinismo da população com relação a temas políticos.

Contudo, a expressão popular “treta” talvez expresse melhor o que fazemos em público, cara a cara ou em ambientes digitais. Tretamos não para servir ao princípio do melhor argumento, em um processo de esclarecimento recíproco, como sonharia Kant, mas para defender posições já assumidas pelo lado com que nos identificamos e para atacar aquilo que já não gostamos.

Em suma, discute-se para ganhar uma briga mesmo sem ter razão. Tretar é preciso, argumentar não é preciso.

A treta hoje é sobre o conflito entre Israel e Palestina, e os ânimos estão tão inflamados que se diria que as próximas eleições brasileiras serão decididas entre o Hamas e o Likud.

Nesse campo minado, verdades e mentiras, revelações e enganações brincam de esconde-esconde entre vídeos descontextualizados, acusações, entrevistas sérias, propaganda camuflada em estudos, relatórios e reportagens. Certezas crescem frondosas onde deveria haver hesitação, simplificações quando se esperaria complexidade, dogmas onde algum ceticismo seria mais prudente.

Por que diabos isso ocorre?

É verdade que o fato de que Israel tenha sido adotado como parte do imaginário do bolsonarismo não ajuda a serenar os ânimos, pois onde há bolsonarismo, há conflito. Isso aconteceu por afinidades ideológicas, posto que Bolsonaro e Netanyahu pertencem à alcateia de animais políticos cujo ímpeto autocrático e necessidade de ter inimigos nem sempre são contidos pelas cercas da democracia liberal.

Mas também porque, como um legítimo trumpismo tropical, o bolsonarismo importou toda a simbologia da direita conservadora americana, inclusive a adesão automática à confusão entre o Israel bíblico e o moderno Estado de Israel. Some-se a isso as representações dos evangélicos que adoram se reivindicar herdeiros diretos do “povo de Deus”.

A esquerda tradicional, por sua vez, sintetiza no conflito séculos de ideologia antiamericana, anti-imperialista e, ultimamente, anticolonial. Nesse imaginário, Israel, com ou sem Netanyahu, é um braço do imperialismo americano, uma potência colonial e opressora que ergueu um Estado rico e armado até os dentes sobre o sangue dos palestinos e dos seus vizinhos árabes e persas.

Estabelecidos os imaginários e as atitudes, o resto é desavença. A extrema direita e a esquerda brasileira vivem uma dialética sem síntese. Um é o que o outro nega. Como a esquerda já estava no terreno quando a nova extrema direita surge, é sobretudo esta que busca, intuitivamente, criar a própria identidade por contraposição: o bolsonarismo é a não esquerda, só que radical.

Isso vale para tudo, de vacina a marcas de chocolate, como vimos na guerrinha infantil do fim de semana, e se estende para guerras e ataques terroristas. Se não faltou gente de esquerda complacente com a carnificina do Hamas, tampouco faltou gente da extrema direita para oferecer condescendência para as draconianas medidas contra a população de Gaza. Não há treta sem o correspondente “passapanismo” nem para acusar o outro lado justamente do que mais pratica: indignação seletiva.

Outra razão talvez seja a necessidade, típica do narcisismo digital, de que todo mundo, o tempo todo, tome posição sobre a rixa do momento. Posição política, por certo, mas também afetiva e existencial. Mesmo que não se compreenda com clareza as questões envolvidas na querela nem a cadeia de consequências que decorrerá do modo ela como for resolvida. Dizer “não sou capaz de opinar” é comportamento socialmente inaceitável.

Por fim, não se inflama uma discussão sem um bom combustível. No caso deste conflito, os depósitos de racismo antissemita e islamofóbico são um reservatório imenso de símbolos e afetos. Com esses recursos à mão, argumentos para justificar preferências mais uma vez se provam dispensáveis.

Afinal, se não sabe por que razão se odeia uns ou outros, não é preciso buscar razões. Basta odiá-los pelo que são.




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