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Artigos • 03 out, 2023

Quem deseja viver 120 anos pelas razões erradas nem com 1.200 ficaria satisfeito


(por João Pereira Coutinho, na FSP) –

Sêneca já dizia que, se soubéssemos o tempo que nos resta, seríamos mais criteriosos com a forma com a qual o gastamos

Viver até os 120, eis o sonho do pessoal. A revista The Economist dedica várias reportagens ao assunto e declara, de maneira ufanista, que a quimera está mais perto do que nunca. Cientistas e bilionários, em alegre concubinato, querem fazer dos 120 os novos 60. Como?

Não vou entrar em detalhes técnicos, até porque eles me escapam. Digamos apenas assim: restringindo de forma severa o número de calorias que ingerimos ou usando medicamentos que neutralizam as células “senescentes”, há ratinhos de laboratório que têm vivido mais do que a conta normal. Seremos nós os próximos?

Não tenho opinião fechada sobre este assunto em particular. Com saúde, boas companhias e dinheiro para o uísque das crianças, aceito os 120 com um sorriso adolescente, até porque sinto, do alto de meus 47 anos, que só agora estou no fim da adolescência.

As duas ideias são comuns no linguajar alucinado dos contemporâneos, razão pela qual é importante revisitar os antigos, que têm mais a ensinar do que a histeria hipocondríaca dos bilionários.

Para começar, a vida é breve?

Não é, explicava Sêneca, em ensaio luminoso sobre o tema, batizado de “Sobre a Brevidade da Vida”. Somos nós que a tornamos breve ao esbanjar todo o tempo que temos.

Eis o grande paradoxo: qualquer um é zeloso com o seu patrimônio, vigiando os intrusos que se podem apropriar dele.

Mas o tempo, o maior tesouro que temos, é dissipado com companhias que não o merecem, em ambições que apenas embrutecem e em ocupações que não nos enobrecem de qualquer forma. E para quê?

Para descobrirmos, antes de um belíssimo epitáfio, que o tempo que realmente vivemos foi só uma pequena parte do tempo que se passou?

É por isso, acrescenta Sêneca, que não há nada mais penoso do que ver alguém, que dilapidou todo esse patrimônio, implorando ao médico que lhe conceda mais tempo para que possa “viver”, finalmente!

Eis o segundo paradoxo: é possível ser velho e não ter vivido, e é possível ser jovem e ter vivido mais que um velho.

O conselho de Sêneca, que me persegue desde os verdes anos, é fulminante: se soubéssemos o tempo que nos resta, da mesma forma que sabemos o tempo que já tivemos, seríamos mais criteriosos com a forma com a qual o gastamos.

E quem sabe talvez descobríssemos, para nossa imensa surpresa, que o tempo que temos não é longo nem breve. É apropriado para uma vida humana apropriada.

E a velhice? Que naufrágio é esse que tanto aterroriza as almas carentes de eternidade?

Catão, o Velho, pela pena de Cícero, tem um diálogo sobre a velhice, agora editado em português pela Edições 70 e com tradução —antiga, vale acrescentar— de D. Francisco Alexandre Lobo, que revela o quão ridículos são todos esses terrores que passamos.

Quatro terrores, para sermos mais precisos: a velhice significa o fim da vida ativa, a fraqueza do corpo, a despedida dos prazeres e, claro, a proximidade com a morte.

A título benevolente, Catão esclarece tudo: “O homem moderado, o de fácil contentar, o de macia índole, passa toleravelmente a velhice. Ao descontentadiço, ao insípido, todas as idades são molestas”.

Que beleza esse português! “Todas as idades são molestas!” Um velho que não sabe viver a velhice provavelmente foi um adulto que não soube viver a vida adulta —e um adolescente que teve na adolescência todo o seu calvário.

Os terrores da velhice, todos eles, procedem daqui. E é por aqui que eles devem ser anulados: há várias formas de vida ativa que não se esgotam durante as canseiras da profissão. A força que temos na velhice é suficiente para o que a velhice pede de nós. Há vários tipos de prazeres à disposição de uma mente mais curiosa.

E, sobre a morte, são os jovens que devem temê-la. Os velhos, ao contrário dos jovens, têm a suprema consolação de saber que chegaram a velhos.

“Por que ler os clássicos?”, já perguntava Italo Calvino. A resposta é conhecida: porque eles são nossos contemporâneos, embora sem os defeitos dos verdadeiros contemporâneos. A passagem do tempo serviu de teste e peneira para que eles surjam inteiramente novos e originais.

Viver até os 120? Tudo bem. Mas para quem deseja esses 120 pelas razões erradas, nem 1.200 anos seriam suficientes.




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