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Artigos • 20 set, 2021

Sem terceira via decente entre Lula e Bolsonaro, o isentão será muito odiado


(por João Pereira Coutinho) – 

Longe de ser um covarde, ele assume, porém, a posição corajosa de ser senhor da sua própria liberdade

Devo aos amigos brasileiros uma das minhas descobertas linguísticas: “isentão”. Assim falam eles de quem não toma partido ou posição política, sobretudo quando o mundo conspira para que sejamos maniqueístas e simplórios.

Talvez sem saberem, essas almas laicas repetem a injunção bíblica contra os mornos, vomitando-os com a mesma fúria divina. Se pudessem, lançariam todos os neutros para o inferno, tal como Dante o fez na sua “Divina Comédia”.

Defendo-me como posso: a isenção, a recusa em participar na lama, a náusea perante “o estado a que isso chegou”, também é uma escolha. Uma nobre escolha. Não se convencem e, pior, imagino que nas próximas eleições brasileiras, se não surgir uma terceira via decente entre Lula e Bolsonaro, o ódio ao isentão só vai crescer.

Para eles, só posso aconselhar a maravilhosa biografia que Stefan Zweig escreveu sobre um conhecido sábio humanista. Intitula-se “Triunfo e Tragédia de Erasmo de Roterdão” (Assírio e Alvim, tradução de Maria Elsa Neves e Maria José Diniz). O destino dos isentões é mesmo um triunfo e uma tragédia.
Comprei o livro depois de ler um texto inspirado da Economist que recomendava Erasmo para os nossos tempos de polarização ideológica. Uma bela recomendação.

E ninguém melhor do que Stefan Zweig para captar essa urgência: o livro sobre Erasmo foi escrito em 1934, quando os totalitarismos devoravam a Europa, e é evidente que Zweig, olhando para Erasmo, estava sobretudo a olhar-se no espelho. Ali estava um intelectual humanista e cosmopolita que a história arrastara para a perdição dos fanatismos.

Mas, antes da perdição, o que interessa a Zweig é apresentar Erasmo como o produto de um tempo em que os homens, libertos da submissão religiosa e feudal da Idade Média, cultivam pela primeira vez a experiência da individualidade.

Entre esses homens está Erasmo, um sacerdote da igreja que, no entanto, apenas deseja responder perante si próprio. “Nulli concedo”, eis a divisa latina de Erasmo, que pode ser traduzida livremente como “não me rendo a nada”.

Importante lição: o “isentão”, longe de ser um covarde, assume a posição corajosa de ser senhor da sua liberdade interior, sem procurar os confortos de um partido, de uma fação, de uma causa.

Claro que essa liberdade interior não o exclui do debate público. O seu “Elogio da Loucura” é uma das mais refinadas sátiras contra a hipocrisia temporal e religiosa do seu tempo —e Stefan Zweig afirma, com razão, que a sensibilidade da reforma protestante nasceu com um panfleto de um sacerdote católico.

Mas o temperamento de Erasmo é reformista, tolerante, aberto à discussão racional; nada o preparava para o “furor teutonicus” de Lutero e seus seguidores, dominados pela certeza dogmática, e até blasfema, de que tinham Deus do seu lado. Eis o dilema que estilhaça Erasmo: de um lado, Roma apela à sua lealdade contra o diabólico de Wittenberg —“Em frente, em frente pela causa divina! Utiliza os teus maravilhosos dons para honrar Deus!”). Do outro, Lutero espera que Erasmo se junte à luta contra a decadência material e moral do papado.

Perante dois fanatismos gêmeos, Erasmo quer ser “integrum”, ou seja, distanciar-se da cegueira de Roma e da violência de Lutero, depois de tentar uma reconciliação frustrada. “Sou um gibelino para os guelfos e um guelfo para os gibelinos”, dirá, em referência culta às lutas que dilaceraram Florença.

Mas o tempo não está para erudições. Como escreve Stefan Zweig em passagem que poderia ter sido produzida hoje, “ninguém quer compreender o seu vizinho; cada um quer impor ao outro, pela violência, as ideias do seu partido, a sua doutrina; e infelizes daqueles que queriam manter-se à parte ou permanecer fiéis às suas próprias opiniões: os que desejariam manter-se entre os partidos ou acima deles são objeto de um duplo ódio!”

Duplo, de fato: Erasmo é escorraçado de Lovaina pelos católicos e é escorraçado de Basileia pelos protestantes. Acaba só, mas de alma intacta, contemplando sem surpresa uma Europa de sangue e ruína. O triunfo e a tragédia do isentão está aqui: ele sabe que o fanatismo acabará por destruir-se a si próprio; mas também sabe que a recusa em participar nessa orgia será o princípio do seu calvário pessoal.

*Publicado na Folha de S.Paulo




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