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Crônicas

Crônicas • 28 dez, 2019

“A cura”, crônica de Jurandir Pereira ( Globo Rural)


Não sei como a preta Sabina entrou para o serviço de nossa casa onde minha mãe, generosa e compadecida, ajuntava sempre com suas filhas e filhos mais as pupilas e agregados, gente que ela adotava e que trabalhava na faina doméstica ou que eram apenas hóspedes casuais, pobres diabos, dedicados a um sempre queixoso, mas um sempre regalado farniente.

Meu pai era um cidadão de finanças desafogadas, um coração misericordioso e simples. Minha mãe, esta saíra de um proletariado lutador, sabia o que vinha a ser pobreza, era mulher inteligente e uma socialista a seu modo, não recusava nunca o seu socorro ao pobre que chegava à porta da sala ou à porta da cozinha. Aquela dita preta Sabina eu não sei por que porta haveria entrado.

Quando cheguei para as férias já a encontrei entre as outras figurantes do trabalho caseiro e não poderia mesmo não tê-la notado, não vinha a ser uma preta como as outras mas se construía por um conjunto de detalhes como jamais havia notado em outra pessoa. Era uma figura encorpada e esteatopígica, como dizem as pessoas letradas, mas em nossa linguagem de simples conversa quer dizer que era uma preta bunduda, característica de algumas raças de mulheres africanas. O corpo sempre coberto de roupas, longas, um pano enrolado à carapinha. Daí que se viam mesmo somente os seus grandes pés descalços, as mãos e o rosto de boca larga e beiçuda, os dentes longos, os grandes olhos onde o que chamamos de branco era amarelado em torno das redondas pupilas pretas.

Madrugadora, quase nunca se assentava e tinha o dom de tirar sonecas ou de cochilar em pé, o que se percebia ao notar que o seu grande corpo oscilava como uma árvore balançada por um vento forte. Isso devia completar o que havia nela de estranho, porém não era só. Porque além do seu pretume e da sua humildade, Sabina se comportava como uma lady, tinha a espontânea verticalidade moral de uma verdadeira sinhá branca, não faltava a seus compromissos, era polida, discreta no pouco que costumava falar e nunca deixava de ter uma perfeita dignidade de opiniões. Por isso sofria bastante com seus dois jovens filhos, a Maria e o Bastião.

A filha, esta não gostava de trabalhar, andava em más companhias, era descabeçada, acabou fazendo abortos vários e se amigando com um velho vendedor de bilhetes de loteria, já na idade de ser seu avô. Disso tudo que Sabina desaprovava, não lhe saíam senão raras, passageiras, resignadas queixas. Sobrara-lhe o Bastião, de estranho gênio que não parava nos empregos por suas turras com o patrão. Havia períodos em que tudo parecia andar certo e de bem com ele. Durava pouco, vinha o ciclo dele se destemperar e de se fazer agressivo, perigoso.

Foi quando passou pela cidade um famoso médico espírita chamado Kyrlaia que oferecia suas consultas no Asilo “A Vinha do Senhor”. E Sabina correu levando-lhe o seu filho Bastião a quem o médico atendeu, examinou, doutrinou e fez o que podia fazer, recomendando que o tratamento melhor para aquele paciente seria interná-lo por algum tempo no hospital psiquiátrico de Itapira. E meses e meses se passaram até que certa manhã minha mãe veio a encontrá-lo à porta da cozinha. Estava corretamente vestido e respeitosamente de chapéu na mão, cumprimentou com a necessária polidez e não faltou ao que seria inteligente nas falas de tais ocasiões; se todos da família estavam bem, se não havia novidades, tudo bom, assim é que deve ser etc.

— Mas estou gostando de te ver, Bastião. Você está ótimo. Vê-se que aproveitou bem o tratamento.

— Foi muito bom, dona Márcia, foi bom demais, respondeu ele. A senhora nem pode imaginar. Não só os médicos são competentes como também humanos, amigos da gente. Os alojamentos são limpos e mobiliados como se fossem quartos de hotel. É um sanatório de verdade. Nada me faltou, até saí com mais do que entrei. Estou curado e me sinto bem, mas bem mesmo.

Jurandir Pereira, mineiro de Poços de Caldas, onde sempre residiu, é autor, entre outros, do livro Um Ladrão de Guarda-chuva (Foto: Ernesto de Souza)

— Então sente-se aí, convidou minha mãe que servia à mesa. Minha mãe passou-lhe a xícara de café com leite, as fatias de pão, a geleia, os sucos de frutas. E lhe recomendou:

— Experimente a manteiga, Bastião, acabou de chegar da fazenda, está fresquinha.

— Muito obrigado, respondeu ele. Manteiga não!

— Mas por que, Bastião? Faz mal?

— Não é isso, dona Márcia, é que depois que virei Jesus Cristo não posso mais comer manteiga.

* Publicado originalmente em outubro de 1996, na edição 132 da revista Globo Rural.




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