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Política • 28 nov, 2019

“Amante cara, ingrata e infiel” (José Pio Martins)


Em 2003 escrevi um artigo com título similar a este, citando algumas notícias sobre sérias distorções no gasto público brasileiro. A primeira, no dia 12 de agosto de 2003, dizia: “Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais há servidores com salários de até R$ 50 mil/mês”. A inflação acumulada desde então anda nos 200%; logo, aqueles R$ 50 mil valem atualmente R$ 150 mil. No dia anterior, o Jornal Nacional havia entrevistado uma operária da lavoura de sisal no Nordeste; ela disse: “Nunca ganhei tanto na lavoura como agora. Chego a tirar R$ 22 por semana”. Essa operária ganhava perto de R$ 100 por mês.

Poucos dias antes, a imprensa havia mostrado uma tal “lista das vovós marajás”, mulheres que recebiam R$ 53 mil ou mais por mês, como pensão por morte de seus maridos militares. Fazendo a conta, naquele ano de 2003, a pensão mensal da viúva de um militar, ou o salário de um servidor da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, era maior que 44 anos do salário da mulher operária na lavoura de sisal. A pensão das viúvas e os salários dos servidores da Assembleia mineira (aqueles relacionados, é claro) representavam uma grave distorção, da qual a maioria absoluta dos servidores não se beneficiava. Era uma distorção a favor de uns poucos.

Na época, o presidente Fernando Henrique Cardoso disse que “o Brasil não é um País pobre, é um País injusto”. Ele acertou ao dizer que é injusto, mas errou ao dizer que não é pobre. O Brasil é pobre e injusto, as duas coisas. Aquela indecência não era obra de um governo específico. Eram distorções de décadas que adentraram certas repartições e corporações estatais e beneficiavam uns poucos, protegidos por leis imorais. Não é por acaso que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão do governo federal, afirma que o gasto público é a maior esteira de concentração de renda no país.

Naquele mesmo ano, iniciando seu primeiro mandato, Lula disse que “peitaria” os funcionários públicos, pois, entre os 3,5 milhões de servidores, apenas 1 milhão deles, 28,6% do total, ganhavam acima do teto do INSS, que era de R$ 2,4 mil por mês (R$ 7,2 mil em valores de hoje). Portanto, 71,4% dos servidores públicos recebiam salários no máximo iguais ao teto do INSS; logo, continuariam recebendo aposentadoria integral, paga pelo Tesouro. Os demais funcionários, 28,6% do total, com ganhos acima do teto, deveriam contribuir para um fundo de previdência complementar.

O teto do INSS hoje é de R$ 5.839,45; portanto, não chega aos R$ 7,2 mil (aqueles R$ 2,4 mil de 2003, trazidos até hoje pela inflação). Lula enxergou aquela injustiça e prometeu aos operários do Nordeste que ficaria ao lado deles e mudaria “tudo que aí está”. Então, seu governo propôs, entre outras mudanças na Previdência, que os servidores trabalhassem até os 60 anos, no caso de homens, e até os 55 anos, no caso de mulheres, para terem direito à aposentadoria igual ao salário integral quando na ativa.

Mas a reforma de Lula parou no meio do caminho e não se falou mais nos servidores da Assembleia mineira, nem nas “vovós marajás”, nem na operária da lavoura de sisal. Justiça seja feita: aquelas manchetes mostravam o descalabro na política de remuneração no setor estatal, onde uma multidão de servidores ganha mal e uma pequena parcela ganha fortunas. Também é preciso dizer que a lei do teto salarial no governo, hoje de R$ 39,2 mil, conseguiu cortar valores excedentes para muitos servidores.

Essas notícias sobre distorções em salários, aposentadorias e pensões – que certamente não têm o apoio da maioria dos funcionários públicos – fazem lembrar o desabafo de um grande brasileiro: Eugênio Gudin – engenheiro, economista, ministro da Fazenda no governo Café Filho (1954-1955), professor e autor de cinco livros sobre economia –, um defensor da liberalização da economia e inserção do Brasil no mercado internacional, que, desiludido com a insistência do país em se isolar em um nacionalismo atrasado, fez o seguinte desabafo: “O Brasil foi a amante que mais amei, e a que mais me corneou. Tendo tudo para ser rico, insiste em se manter na pobreza”.

Eugênio Gudin teve o privilégio de viver 100 anos, de julho de 1886 a outubro de 1986, mas não teve o privilégio de ver o país se desenvolver. Pelo contrário: ele morreu oito meses após a implantação do Plano Cruzado, em fevereiro de 1986, e pôde assistir ao espetáculo fracassado do congelamento de preços, salários e câmbio, em uma tentativa de debelar a hiperinflação.

Passados 33 anos desde a morte de Gudin, aquela amante infiel tornou-se também cara e ingrata. Além de usar o dinheiro do povo para beneficiar alguns, num mar de distorções, privilégios e corrupção, essa amante toma muito dinheiro de quem a sustenta, na forma de uma carga tributária elevada, e proporciona poucos prazeres, na forma de serviços públicos de baixa qualidade. E hoje, dado o tamanho da pobreza e o elevado desemprego, muitos ainda morrerão como Gudin: sem ver nosso País ingressar no clube dos desenvolvidos.

O autor é economista




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