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Política • 27 nov, 2021

Livro retrata João Cabral sem ocultar sua arrogância de filho da casa-grande


(Por Mario Sergio Conti) – 

Escrito por Ivan Marques, biografia narra episódios assombrosos da vida do grande poeta, autor de ‘Morte e Vida Severina’

É rara a pessoa cujos atos estejam em perfeita harmonia com o que pensa. Alguém que, tendo adotado princípios e valores na juventude, mantém a coerência até morrer.

As pessoas mudam em função de experiências vividas. Do que lhes ocorre ao redor, na cidade e no mundo. São como pedras sobre as quais corre o ácido do tempo, que dissolve princípios e corrói valores.

Essas abstrações balofas adquirem concretude na literatura. Ela está cheia de gênios cínicos, de libertadores estéticos enjaulados na sua pequenez existencial. O esgarçamento entre vida e obra tende ao dramático. Pode revelar desonestidade, adaptação, arrivismo.

Boas biografias de escritores apreendem a tensão entre um autor e seus livros. E situam o todo num quadro histórico, no qual se projetam dados literários e psicológicos.

Veja-se “João Cabral de Melo Neto – Uma Biografia” (Todavia, 557 págs.), de Ivan Marques. Ela não julga o poeta. É cautelosa no manejo do manancial de informações que levantou. Às vezes, as expõe com uma brevidade que pode soar condescendente. Mas que ninguém se engane.

O retrato que traça do poeta é assombroso. A partir da vida de Cabral, o livro entrevê um período da vida nacional; a formação de um rebento da casa-grande que se tornou stalinista; o compadrio pecuniário da intelectualidade; as vilanias da diplomacia e da política.

Ivan Marques, professor de literatura na USP, não tem verve polêmica. É com serenidade que relata os fatos —mas estes falam grosso. Mostram que o grande poeta jamais deixou de ser um grão-senhor. Fazia questão de carros caros e de viver em mansões, cercado por criados. Humilhava-se para obter um cargo ou galardão.

Neurastênico, Cabral era maledicente com amigos, hostil com subalternos, acomodatício com quem mandava e ressentido com todo mundo. Era o contrário da sua poesia solar, límpida.

Fazia com que empregadas lhe oferecessem inúmeros pratos no almoço, que rechaçava com irritação crescente. Certa vez, ao recusar um, jogou com força o prato com comida para cima. A refeição grudou no teto.

Com os poderosos era um doce de coco. Nos anos 1950, um amigo íntimo, Mário Cabrália, delatou-o: comunista. Ato contínuo, passou para Carlos Lacerda uma carta de Cabral que permitiu ao Corvo ilações delirantes. Num passe de mágica, “Luiz Carlos” virava Luiz Carlos Prestes.

O tenor da direita começou uma campanha sórdida na Tribuna da Imprensa. Para fazer com que Lacerda parasse, o poeta lhe mandou um mimoso cartão de Natal. Não deu certo e a cruzada prosseguiu. Cabral e alguns colegas foram afastados do Itamaraty sem remuneração.

Foi reintegrado no cargo pelo Supremo meses depois. Mas queria que a direção do Itamaraty o nomeasse para um cargo no exterior. Isso não era feito porque se temia a reação do Corvo. Áulico, melífluo, o poeta foi à casa de Lacerda, seu maior inimigo, convencê-lo de que era um bom rapaz.

O beija-mão se repetiu na sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1969. Dias antes, foi ao Palácio das Laranjeiras dobrar a espinha e pôr nas mãos de Costa e Silva o convite para a cerimônia. O AI-5, as prisões, a censura e as torturas não intimidaram seu puxa-saquismo.

Disse a Vinicius de Moraes que a escrevera para “analfabetos”. Na véspera da estreia na França, passou um pito no seu diretor, Silnei Siqueira. Afirmou que era uma porcaria. Que não havia cabimento em Chico Buarque tê-la musicado. Que a peça seria vaiada. A encenação foi triunfal.

Quanto à obra dos outros, era de uma asnice extremada. Cobria Camões e Pessoa de xingamentos e uma vez se referiu a “esse mulato safado chamado Machado de Assis”. Bom mesmo era Stálin, que considerava um linguista de mão cheia, e não acreditava nos seus crimes.

Ivan Marques escreve que Cabral era um provocador. Alguém que exagerava para chocar. O poeta também sabia ser simples e sincero. Na primeira edição de 1955, o Diário de Notícias perguntou-lhe sua ambição para o ano. “Quero um bom posto”, respondeu.

*Publicado na Folha de S.Paulo




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