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Artigos • 11 fev, 2020

O Direito Penal enganador, a Lei Anticrime e o crime de estelionato


Grégore Moreira de Moura*

A par de diversas alterações na legislação penal e processual penal com calorosos debates em torno do juiz de garantias, do tempo máximo de cumprimento de pena, das mudanças na progressão de regime, dentre outras. Chama a atenção uma alteração menos comentada, mas não menos importante, que é a transformação da regra geral do crime de estelionato em crime de ação penal condicionada à representação, exceto em quatro hipóteses que continuam de ação penal pública incondicionada pelas seguintes condições: se a vítima for a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

Os argumentos a favor e contra a alteração já foram bem delineados pelo CONJUR em matéria intitulada “Pacote anticrime” torna estelionato crime de ação condicionada e divide opiniões, a qual elenca opiniões de grandes juristas com fundamentos jurídicos e extrajurídicos de ordem eminentemente prática.

A proposta deste texto é um pouco diferente, pois a ideia é fazer uma análise macro do Direito Penal e depois inserir a mudança legislativa nesse contexto.

O Direito Penal é enganador, assim como o estelionatário, já que seleciona quem vai punir (basta analisar a escolaridade dos presos e sua condição econômica), é simbólico ( de vez em quando ataca personalidades para gerar uma falsa sensação popular de que vale para todos) e é ineficiente, pois a maioria dos crimes que ocorrem não chegam ao conhecimento das instituições oficiais e quando chegam o maior acusado é o “AD” (autoria desconhecida), e dos que são processados há um percentual bem baixo de efetivo cumprimento total da pena, enfim, é preciso mudar concepções.

O critério que deve nortear a escolha da ação penal, ao menos em regra, é a disponibilidade do bem jurídico, ou seja, se disponível o bem, a ação penal deve ser pública condicionada ou privada. Estelionato ofende o patrimônio, logo, disponível. Com efeito, a ação no crime de estelionato, assim como em todos os crimes contra o patrimônio sem violência ou grave ameaça, deveriam ser públicas condicionadas ou privadas.

E por que o Direito Penal seria mais fraterno assim?

Porque ao traçar um resgate da vítima para o processo penal, hoje tão coisificado, quebra o modelo autoritário de inquérito e processo, na esteira do sistema acusatório preconizado na Constituição Federal.

Como tivemos a oportunidade de aduzir no livro Direito Constitucional Fraterno:

“Portanto, a fraternização das ciências criminais perpassa por alterações mais profundas (como já trabalhado no processo penal fraterno), a fim de diminuir a violência na aplicação do Direito Penal e ciências afins. A primeira delas é eliminar as teorias que promovem o direito penal do inimigo, já que desrespeita o código de amizade e comunidade, transformando o direito penal em elemento fomentador de violência direcionada a estereótipos. A segunda é aprofundar os estudos de vitimologia, com objetivo de resgatar a vítima como protagonista no sistema penal, a fim de que volte a se apoderar do conflito e permita sua capacidade de resolução de maneira efetiva e substancial. O terceiro é trazer um olhar para a criminologia da não-cidade, ou seja, estudar as causas do crime e tentar explicar o fenômeno criminal sob um viés fraterno, isto é, considerando e olhando para o diferente e para os excluídos pela cidade”.

A vítima ao sofrer o crime de estelionato quer o seu patrimônio restituído imediatamente e não necessariamente que o autor vá para a cadeia. O fato de o crime de estelionato ser de ação penal pública incondicionada em nada alterou essa realidade.

Todavia, reduzir o âmbito de atuação do Direito Penal para os crimes de maior potencial ofensivo pode melhorar sua eficácia e potencial resolução de casos concretos.

Enfim, a alteração proposta pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) em transformar o crime de estelionato em ação penal pública condicionada à representação é uma mudança de concepção para um Direito Penal menos enganador, mínimo e fraterno e deveria ser estendida para todos os crimes contra o patrimônio praticados sem violência ou grave ameaça.

Quiçá o legislador faça mudanças não de textos, mas de concepções e paradigmas no Direito Penal e no Processo Penal, sob pena de ficarmos com as mesmas coisas com novas vestimentas, como diria Shakespeare:

“Não, Tempo, não zombarás de minhas mudanças!

As pirâmides que novamente construíste

Não me parecem novas, nem estranhas;

Apenas as mesmas com novas vestimentas”.

O tempo dirá!

*Procurador Federal da AGU. Mestre em Ciências Penais e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG.Editor-Chefe da Revista da Advocacia Pública Federal, editada pela ANAFE. Conselheiro Seccional da OAB-MG. Ex-Diretor Nacional da Escola da AGU.

Fonte – Congresso em Foco




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