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Artigos • 18 dez, 2023

As agruras de Lula no Presidencialismo mitigado


(por Roberto Amaral*) – 

Deve-se a Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) esta frase lapidar que resume a formação autoritária de nosso país: “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”.

A assertiva permanece dolorosamente atual. A classe dominante brasileira jamais se conciliou mesmo com a democracia clássica das liberdades formais, puramente política, à qual se referia Sérgio Buarque,.

Assim a casa-grande, que fez o império e proclamou a república, assim seus herdeiros de hoje, o agronegócio primário-exportador, e os especuladores da Faria Lima, o chamado “mercado”, que controla o mais reacionário Congresso de quantos tem notícia a historiografia brasileira.

Golpear a democracia, qualquer, quando ela logra sobreviver, é a alternativa de que os donos do poder sempre lançam mão (e muitos são os instrumentos de que dispõem) quando lhes parece que as nuvens no horizonte longínquo insinuam a formação de governos (logo classificados de “populistas”) preocupados ora com o desenvolvimento nacional soberano, ora com a simples proteção dos deserdados do capitalismo, e assim buscando promover algum trabalho, alguma previdência social, alguma valorização dos salários, um pedaço de terra para nele o sem teto e sem terra trabalhar e matar a fome.

O varguismo juntou essa duas pontas, e é conhecida a safra que colheu.

Do mal-entendido apontado por Sérgio Buarque se desdobra a intermitência democrática, relembrada recentemente por José de Souza Martins (“O país dos intervalos democráticos”. Valor, 6/10/2023).

As experiências democráticas, no Brasil, são sempre pro tempore. A análise se conforma na república, pois seria de serra acima pensar em algo não autoritário, não reacionário, seja na colônia seja no império, fundado no latifúndio e no escravismo, no voto censitário e no poder moderador do monarca, que a caserna tenta tomar para si.

Mas na República dos fardados e da lavoura mineiro-paulista, aquela que chega aos anos 1930, algo com ares de ordem democrática (na sua estrita acepção política, anos-luz distante de avanços sociais) apenas se pode considerar o regime nascido com a efêmera constituição de 1934, incompatível, porém, com o projeto do caudilho que já habitava o Palácio do Catete.

A promessa weimariana é devorada pelos oito anos da ditadura do “Estado Novo”, nascida em 1937 e derruída em 1945 pelas mãos dos mesmos generais que a haviam instituído e sustentado.

Finalmente nos encontrávamos próximos de um processo eleitoral (ainda que eivado da fraude que o deslegitima), e teríamos uma constituinte, em 1946, substituindo a outorga de príncipes e ditadores.

É a nossa intermitência democrática, limitadamente formal, mas que, aos trancos e barrancos, atravessando golpes e tentativas de golpes de Estado, nos conduz até 1964, e ao reencontro com a realidade de nosso atraso político: o golpe militar de 1º de abril, que nos impôs 21 anos de ditadura com seus torturadores impunes e os cadáveres insepultos de suas vítimas, e a tragédia política que ainda hoje nos afeta, como mostra a história recente.

De uma forma ou de outra pode-se dizer que o intervalo que vem da constituinte de 1988 aos dias de hoje consigna 35 anos de algo muito semelhante a um período democrático, que nos pede um brinde na próxima virada de ano. Mas a história não é linear.

Há transformações sociais e econômicas que perfuram a superfície conhecida, ameaças que falam à qualidade do regime, exigindo denúncia e combate que começa com sua análise, e o ponto de partida é a tomada de consciência do refluxo do pensamento e da ação dos partidos de esquerda, uma crise que não é de nossos dias, pois remonta à fratura do socialismo real, mas que se agrava entre nós a partir dos primeiros sucessos eleitorais de centro-esquerda, que levaram nossas organizações e nossas lideranças a confundir tática eleitoral (transformada em técnica mercadológica comum à esquerda e à direita) com estratégia.

Ao fim e ao cabo, nos tornamos todos “socialdemocratas”, porque à noite todos os gatos são pardos.

Com o recuo dos socialistas de um modo geral, dos comunistas e dos trabalhistas, das organizações políticas e dos movimentos sociais, das chamadas forças progressistas e democráticas, e do sindicalismo, estávamos de fato renunciando à batalha político-ideológica.

No geral renunciamos às políticas de organização e à militância. E na política, como na guerra, como na vida, não existe vácuo.

Deixada vazia, sem mobilização, à margem de qualquer proselitismo, a vida real – o chão de fábrica, as organizações sindicais e populares, as favelas e as periferias das cidades – abriu-se à pregação unilateral da direita, ainda mais instrumentalizada, acionando seus aparelhos de sempre, o púlpito e as carteiras dos bancos, o neopentecostalismo e as milícias.

Companheiros de boa cepa se dizem surpresos com o mundo que se revela a seus olhos como a mudança brusca de cenário em peça trágico-cômica. Esquecem-se de que em política, e certamente em tudo o mais, não há almoço grátis.

O ponto de advertência, para a centro-esquerda e a esquerda orgânica, poderia ter sido os idos de junho de 2013, mas as ilusões das aparências não nos permitiram conhecer movimentações tectônicas que, silenciosas, alteram a formação política da sociedade, que supúnhamos cristalizada desde as eleições de 2002.

Assinalo o ano de 2013 como o início de um período novo, ou próprio, uma identidade em face daquele período maior, já referido, de intermitência democrática, aberto com a reconstitucionalização de 1988.

É o período que chega aos nossos dias com indicadores de seu agravamento.

Nele contamos a difícil eleição de Dilma Rousseff em 2014, a ditadura da Câmara dos Deputados em 2015 inviabilizando o segundo mandato de Dilma Rousseff, o golpe de 2016, o governo preâmbulo de Michel Temer, a Lava Jato e sua sequência de golpes jurídico-políticos, a eleição e o governo Bolsonaro, as eleições de 2022, a posse de Lula e a intentona de 8 de janeiro deste ano.

No momento, uma expectativa: o governo Lula, um projeto ainda por ser que a direita intenta inviabilizar. Continue lendo 




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