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Artigos, Brasil • 04 abr, 2018

O STF e a turma dos sem-instância


por Elio Gaspari

O Supremo Tribunal Federal julgará hoje o habeas corpus de Lula, condenado pelo TRF-4 a 12 anos e um mês de prisão. Por trás e acima desse recurso está a questão do cumprimento de uma sentença depois que ela passou pela segunda instância. O tribunal já decidiu nesse sentido, mas alguns ministros mudaram (ou não mudaram) de opinião, levando a bola de volta ao centro do campo. Os doutores são todos adultos e sábios. Suas decisões são finais, e seus argumentos eruditos às vezes são incompreensíveis.

Na questão da segunda instância trata-se de decidir se um cidadão condenado por um juiz, com a sentença ratificada no primeiro nível superior, deve ir para a cadeia, ou se ele tem direito a continuar solto até que seja apreciado o seu último recurso.

Em juridiquês, o debate é interminável. Na vida real, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal discutem a essência social da Justiça brasileira. Essa questão só esquentou quando o juiz Sergio Moro começou a mandar para a prisão a turma do andar de cima. Isso porque no andar de baixo a história é outra. Quatro em cada dez brasileiros que dormem na cadeia estão lá sem julgamento algum. São os “sem-instância” chamados de “presos provisórios”, gente que não tem dinheiro para pagar bons advogados. Há 711 mil detentos no país, 291 mil são “provisórios”.

Muita gente torceu o nariz quando o ministro Luís Roberto Barroso disse que há um velho “pacto oligárquico” na raiz das roubalheiras expostas pela Lava Jato. Os pactos oligárquicos são implícitos e impessoais. Ninguém se apresenta como representante da oligarquia das empreiteiras, pedindo audiência a um burocrata nomeado pela oligarquia política. Apesar disso, os pactos do passado são reconhecidos e estudados, sem ofensas aos mortos. Está nas livrarias “Africanos Livres – A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil”, da professora Beatriz Mamigonian. Ela contou um aspecto do pacto oligárquico que sustentou a escravidão no século 19 e expôs a boca-livre da elite do Rio no trato dos negros contrabandeados que eram capturados pelos ingleses ou pelo governo.

A coisa funcionava assim: desde 1831, pela lei, seriam livres todos os africanos chegados ao Brasil. Foram capturados algo como 11 mil negros, transformados em “africanos livres” obrigados a prestar 14 anos de serviços à Coroa, que os terceirizava para os maganos da Corte. Os concessionários pagavam uma taxa que equivalia a um mês de trabalho do negro, caso o alugassem para outros serviços.

Mamigonian conta o caso de Felício Mina, que foi trazido para o Rio em 1831. Em 1844, estava preso e esperava que os ingleses viessem protegê-lo. Seu concessionário dizia que ele era um ladrão perigoso, por “altivo”, “jamais disposto a humilhar-se”.

Entre 1831 e 1835 o concessionário de Felício explorou um plantel de 15 “africanos livres”. Ele se chamava José Paulo Figueroa Nabuco de Araújo, nada a ver com o pai de Joaquim Nabuco. Talvez algum dos 11 ministros de hoje lembre dele, pois era titular do Supremo Tribunal de Justiça e escreveu uma “Coleção Cronológica das Leis do Império do Brasil”. Talvez o doutor não soubesse, mas fazia parte do pacto oligárquico e usufruía dos seus benefícios. (Jornalistas também tinham acesso ao mimo dos negros.)

*Publicado na Folha de S.Paulo




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