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Artigos • 22 abr, 2020

A cidade precisa de gente


 

Parem de glamourizar o mundo sem humanos

A imagem de uma água-viva nos, agora, transparentes canais de Veneza é impressionante. Bonito mesmo.

Há, na internet, fotos de animas que invadiram ruas de cidades-fantasma, relatos de passarinhos cantando nas janelas, de macacos que voltaram a povoar árvores e que apareceram nadando em piscinas de um condomínio.

Muita gente suspira por ver o céu estrelado, sem a poluição que sufoca as grandes metrópoles. Um amigo gringo contou que viu raposas em seu jardim. É tudo muito lindo, mas se o preço é que as pessoas não saiam mais de suas casas, não, muito obrigada.

O ser humano parece que não deu certo mesmo, maltratamos o planeta, desperdiçamos recursos naturais, nos acostumamos a ver famílias inteiras embaixo de elevados, trancafiamos animais em jaulas (já assistiram a Tiger King? Spoiler: há 10 mil tigres vivendo em cativeiro nos Estados Unidos e apenas quatro mil livres em todo o mundo), há mais gente vivendo em condições de escravidão agora do que nos tempos em que essa prática era liberada. Somos horríveis.

Posso continuar uma lista interminável de motivos que temos para nos envergonhar. Parece claro que precisamos melhorar nossas relações com a natureza, com o consumo, com o próximo, mas isso não significa que o caminho seja o de glamourizar o mundo sem humanos.

Principalmente quando o céu voltou a ficar estrelado às custas de gente morrendo. Não é apenas uma utopia, mas uma utopia bocó-namastê-elitista.

 A maioria das pessoas só tenta sobreviver a essa crise, enquanto damos likes em imagens de javalis invadindo as ruas de uma cidade qualquer nos cafundós da Itália. Não contem comigo.

Abri mão do carro, não nado com golfinhos, reciclo lixo, comprei canudos de metal, morro de remorso de um dia ter entrado numa jaula com leões, certamente dopados, acho zoológico um treco pavoroso, critico tanto a desigualdade escandalosa da cidade em que vivo, que desperto antipatia em muitos locais, e escrevo sobre o problema de falta de saneamento há alguns anos, muito antes de virar modinha.

Não é muito, sigo tentando ser uma pessoa com mais consciência social e menos fútil, mas não acho que o mundo precisa ser sacrificado porque faço saudação ao sol e uso sacolas retornáveis.

Dá pra melhorar um bocado, faz tempo que as coisas precisam mudar, mas sem esse discurso de que as cidades estão melhores sem as pessoas. As cidades não existem sem as pessoas.

Temos na história exemplos de lugares que viraram ruínas ou foram abandonados, destruídos por desastres naturais, econômicos ou por guerras.

O aquecimento global pode engolir algumas regiões daqui a um tempo. Quando essas coisas acontecem as pessoas vão embora e levam com elas a alma da cidade que existiu ali um dia.

Uma cidade sem gente é triste. Uma cidade vazia é uma cidade morta. Não vejo a hora de voltar a reclamar do trânsito, de multidão, de gente barulhenta, de bares cheios, de praia lotada. De ver amigos brindando, famílias felizes, casais apaixonados. De me indignar com as ruas sujas, da bagunça, do jeitinho, da malandragem. Quero todos aqueles velhos problemas já muito conhecidos de volta. O mundo era, sim, um lugar que precisa ser muito melhor para a maioria, mas que saudade do mundo. E que saudade do mundo cheio de gente.

por Mariliz Pereira Jorge

*Publicado na Folha de S.Paulo




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