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Artigos • 03 jun, 2024

O Brasil faraônico


 ( por Gaudêncio Torquato ) –
Escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

A lembrança vem rápida, puxada do baú das reminiscências. Nos meados dos anos 60, repórter iniciante do Jornal do Brasil, na época o mais admirado do país, desloquei-me à Sudene, na av. Dantas Barreto, em Recife, para cobrir a reunião mensal dos conselheiros do órgão, composta pelos 9 governadores da região e representantes de Ministérios.

Na ocasião, ouvi do então governador Alberto Silva (MDB-PI), a historinha: “o piauiense tem um complexo de inferioridade. Encontra uma pessoa desconhecida, jeito arrogante e metido à besta. O sujeito se apresenta, com nome e credenciais. E pergunta: o senhor é de onde? O piauiense, raiva na cara, fazendo um gesto com as duas mãos, como estivesse partindo para a briga, responde: “eu sou do Piauí, e daí?”.

O gesto de briga, na visão do governador e engenheiro, traduz o sentimento do piauiense de carregar um recalque: ser originário de um Estado, na época devastado pela pobreza, junto com o Maranhão, figurando no ranking como o ente federativo menos desenvolvido do país. O chiste era: os dois Estados, em um só território, teria o nome de “Piorão”.

Alberto Silva levava muito a sério o sentimento de seus compatriotas, a ponto de, em uma de suas gestões, ter cumprido a promessa de campanha eleitoral, de puxar Copacabana, o belo cartão postal do Rio de Janeiro, para Teresina, a capital. Criou a “Poticabana”, uma praia formada nas margens do rio Poti. Com ondas e tudo.

Para alegria dos piauienses, das crianças, principalmente, adquiriu nos Estados Unidos um equipamento para formação de ondas. A sensação de enfrentar ondas gigantes nas águas sujas e barrentas do rio Poti, nas proximidades de um hotel 5 estrelas, com o mesmo nome do rio, seria o toque de charme do empreendimento. Mas a alegria foi contida. No dia da inauguração, uma criança morreu afogada. Outras, quase. Veio a tristeza. A praia acabou, enterrada pela tragédia.

O fato é que a imitação, o gosto pela extravagância, o toque de esnobismo, enfim, a vontade de construir altares grandiosos fazem parte do ethos nacional. O complexo de vira-lata, imagem criada por Nelson Rodrigues para traduzir a inferioridade em que o brasileiro se coloca ante o mundo, produz, de outro lado, a cultura das coisas fabulosas, o jeito brasileiro de entrar na tumba de faraó.

Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo País na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados e massas volumosas que causam estupefação. E secam os cofres.

O Brasil se habilita a ser um hábitat para abrigar o sono eterno dos faraós. As majestades nacionais se sentem motivadas a ganhar assento nos espaços do pharao-onis, termo do velho latim para significar “casa elevada”. O planalto brasiliense, imaginado por JK, é a morada dos faraós no século 21.

O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra for construída em Brasília, deverá receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos. Os faraós não olham para gastos. Para onde se olhe na Esplanada dos Ministérios e arredores, se enxergam tumbas resplandecentes. Muitas construídas sob a engenharia de bilhões. Não se pretende questionar a qualidade técnica e artística das monumentais obras de Brasília e de outras paragens.

A capital federal, seu criativo traçado e, de maneira mais abrangente, a própria arquitetura brasileira, ocupa lugar de destaque nos mais belos portfólios do planeta. A questão diz respeito aos princípios constitucionais da economicidade, moralidade e finalidade da administração pública. Que devem ser obedecidos a partir dos gestores lotados nos píncaros da administração pública. As sedes monumentais, apesar do encantamento que provocam, puxam as ondas do desperdício. Eis a pergunta recorrente: o custo da obra faz jus ao porte das tarefas do órgão?

Vejam o caso do TSE. O Tribunal Eleitoral é formado por sete ministros, três dos quais já integram o STF. Se os desníveis nos andares do edifício judiciário são alarmantes, imagine-se a situação catastrófica em outras áreas. Outras frentes do desperdício: perdemos 50% dos alimentos, perda estimada em R$ bilhões anuais, o que daria para alimentar 50 milhões de pessoas, evitar perda de 40% da água distribuída e 30% da energia elétrica. Os cálculos foram feitos há tempos pelo professor de Engenharia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro José Abrantes, autor do livro Brasil, o País dos Desperdícios. Se a montanha de riquezas enfiadas no ralo pudesse ser preservada, o País estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências.

A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, assim explicada: a res publica é entendida como coisa nossa, o dinheiro dos cofres do Tesouro tem fundo infinito, o Estado é um ente criado para garantir casa, alimento e bem-estar.

E quais seriam os caminhos mais curtos para diminuir o Produto Nacional Bruto do Esbanjamento (PNBE)? Ordem e disciplina nos gastos. Rigor no preceito constitucional da economicidade e moralidade. Uso racional do espaço público. Coordenação eficaz dos planos de obras. Qualificação e treinamento dos quadros funcionais. Elevação geral do nível educacional da população.

As vias, todas com sua importância no conjunto, se completam. No momento em que o mais modesto dos brasileiros conseguir decifrar a conta dos exageros nos umbrais da gastança, as distâncias entre os compartimentos da pirâmide serão menores e o Brasil, maior. Meta para mais de uma geração.

Escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

 




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