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Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

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Artigos • 21 mar, 2020

“Oh amigos, mudemos de tom!”


Justamente no momento em que a Europa pretendia lembrar os 250 anos de Beethoven, a Alemanha ficou muda. Em tempos de coronavírus, devemos ser gratos ao compositor por sua música e por ter mostrado o poder do silêncio.
Bonn, a cidade onde Beethoven nasceuBonn, a cidade onde Beethoven nasceu, planejou uma série de concertos em sua homenagem em 2020

Caros brasileiros,

vocês se lembram do sentimento de quando voltam de uma viagem, mas a mente ainda não retornou? Quando o corpo desce do ônibus ou do avião, cansado, mas a cabeça ainda está em outro lugar? Muitas vezes, demora para voltar. E enquanto você está presente fisicamente e se inseriu no cotidiano, a sua mente continua viajando.

Assim foi a minha atitude em relação ao coronavírus. Ele também viaja mais rápido que a minha mente. Enquanto eu ainda achava que ele ficaria lá longe, na China, ele já tinha entrado na Europa. Enquanto eu achava que ele estava preso na Itália e não iria atravessar os Alpes, ele já tinha cruzado despercebidamente a fronteira com a Áustria e a Alemanha.

Agora, o vírus parou a Alemanha. O que era normal uma semana atrás, um dia atrás, não vale mais. As coisas e os avisos mudam de hora em hora. O número de infectados sobe exponencialmente. As lojas fecharam, as escolas também, e a vida cultural e musical foi interrompida. Só os passarinhos cantam.

O país ficou mudo. É uma agonia silenciosa que deixa tudo parado. Parece que a Alemanha inteira virou um cemitério e emudece diante do túmulo. Como se não tivesse mais nada para dizer. Não adianta gritar “fora isso, fora aquilo”. Só nos resta lamentar a perda de uma vida cheia de alegrias e emoções. E encarar a realidade.

O coronavírus parece o luto, quando a dor nos isola dos amigos e até dos familiares que dizem que a vida não pode parar. Que dizem que o tempo cura todas as dores. Mas o coronavírus mostra: a vida pode parar sim.

O vírus não veio de um dia para o outro. Ele não foi igual ao tsunami que, em 26 de dezembro de 2004, destruiu grandes partes da Indonésia, Sri Lanka, Tailândia e Índia. Ele veio de mansinho, quase despercebido.

Primeiro, ele foi ignorado; depois, subestimado. Uma atitude bem comum, que evidencia que a capacidade do ser humano de reprimir fatos não desejados parece ser maior que a capacidade de enxergá-los racionalmente.

É uma coincidência muito grande que isso tudo ocorra justamente neste momento em que as cidades de Bonn e Viena e a Europa inteira pretendiam lembrar com muitos concertos o nascimento do compositor Ludwig van Beethoven, 250 anos atrás. Beethoven era surdo-mudo.

Ele começou a sentir os primeiros sintomas da surdez a partir de 1796, quando tinha apenas 26 anos. Por incrível que pareça, mesmo com toda deficiência e discriminação que ele sofria, conseguiu externalizar a música que pulsava dentro dele.

Foi o poder da música que afastou o silêncio interno e externo e aliviou o sofrimento de Beethoven. No seu confinamento, ele escreveu seis de suas nove sinfonias, incluindo a nona, com a famosa canção Ode à Alegria, que virou o hino da Europa.

“Oh amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais prazeroso e mais alegre!” Essas são as primeiras palavras do poema de Friedrich Schiller, que Beethoven musicou na nona sinfonia. É de arrepiar essa força de superação que veio da música dele.

Em tempos de coronavírus, sou grata por esse legado. Grata por poder apreciar a obra desse gênio musical, que nasceu 250 anos atrás. Grata por poder ouvir as sinfonias e os concertos dele, mesmo que esteja somente em casa, e não num teatro ou numa praça pública.

A Alemanha ficou muda, mas emudecer não significa ser mudo e indiferente perante o próximo. Às vezes, é preciso ficar mudo para poder ouvir melhor a nossa própria voz e mudar. Beethoven nos deu muito mais que a Ode à Alegria, ele nos mostrou o poder do silêncio.

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

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