Campo Grande, 26/04/2024 14:26

Blog do Manoel Afonso

Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

Política

Política • 18 nov, 2020

Em livro, Obama fala sobre o pânico que emergiu nos EUA como reação a primeiro presidente negro


(por Patrícia Campos Mello) – 

Em memórias publicadas nesta terça, ex-presidente faz observações pouco gentis sobre Lula e Putin

Poucos dias após a eleição de Barack Obama em 2008, o presidente George W. Bush ligou para cumprimentar o democrata pela vitória histórica. Fosse “pelo respeito que ele tinha pela instituição” ou por “decência pura e simples”, Bush fez de tudo para ajudar Obama na transição, e as filhas do republicano chegaram a reorganizar sua agenda para levar as filhas de Obama em um tour pelas “partes divertidas” da Casa Branca.

Quando o ex-presidente Obama descreve em seu novo livro a civilidade com que Bush o ajudou na transição, é inevitável não pensar nas atitudes do atual mandatário americano, Donald Trump, que se recusa a admitir a derrota na eleição e atrapalha a transferência de poder para o presidente-eleito Joe Biden.

Mas o livro “Uma Terra Prometida”, que será publicado nesta terça-feira (17) no Brasil pela Companhia das Letras, mostra que o populismo de direita que envenenou o cenário político americano, calcado em xenofobia, racismo e nacionalismo, começou a tomar conta do partido republicano já naquela época.

Obama afirma que era como se a simples presença do primeiro presidente negro na Casa Branca tivesse desencadeado um pânico, uma sensação de que a ordem natural das coisas havia sido subvertida. Candidatos republicanos adotaram o ressentimento como tema central, assim como a Fox News e os bilionários irmãos Koch, patrocinadores de causas conservadoras. Segundo Obama, o mote era: “O governo estava tomando dinheiro, empregos, vagas em faculdades e status social de gente trabalhadora e merecedora como nós e entregando a eles —os que não compartilham de nossos valores, que não trabalhavam tanto quanto nós…”.

Trump entendeu cedo que poderia se aproveitar desse ressentimento para se alavancar na política americana. Ele passou a espalhar a teoria da conspiração birther, de que Obama não teria nascido nos EUA, mas sim no Quênia, e, portanto, não poderia ser presidente dos EUA. O que começou como uma piada que Obama não levava a sério ganhou tração. Pesquisas mostravam que 40% dos americanos estavam convencidos de que Obama não havia nascido nos EUA. “Aos milhões de americanos que se sentiam ameaçados por um negro na Casa Branca, ele [Trump] prometeu um elixir para sua ansiedade de fundo racial”, diz Obama.[ x ]

O livro abrange a infância e o início da carreira política, com as eleições ao senado estadual e nacional, passando por sua vitória histórica em 2008 e os dissabores no governo, em que teve suas iniciativas constantemente bloqueadas pelo Congresso dominado por republicanos a partir de 2010. Aborda a criação do Obamacare, uma tentativa de aumentar o acesso dos americanos ao sistema de saúde, a guerra no Afeganistão, o estímulo econômico, e termina com a operação que levou à morte de Osama bin Laden, líder do grupo extremista Al Qaeda.

Obama escreveu o livro à mão, em blocos de folhas amarelas —“acho que o computador dá um falso brilho até mesmo a meus rascunhos mais preliminares, além de emprestar a pensamentos simplórios uma aparência de coisa acabada”.

Após deixar o governo, ele e a primeira-dama Michelle assinaram um contrato de US$ 65 milhões com a Penguin Random House para publicar suas memórias. “Minha História”, de Michele, saiu em 2018 e já teve mais de 8 milhões de exemplares vendidos no Canadá e EUA.

Já as memórias de Obama não saíram como planejado, como ele admite —a ideia era escrever um volume de 500 páginas, em um ano. A obra atrasou alguns anos e serão dois volumes. Episódios polêmicos do governo Obama, como o uso de drones para atacar no Afeganistão, política de imigração com recorde de deportações e a espionagem da Agência Nacional de Segurança devem ficar para o próximo volume.

Obama discorre sobre a ascensão da política tóxica atualmente em vigor com o fortalecimento do movimento Tea Party, que acabaria sequestrando o partido republicano. Um de seus maiores símbolos foi Sarah Palin, a ex-governadora do Alasca escolhida para vice do republicano John McCain em 2008. “Através de Palin, os espíritos sinistros que havia tempos espreitavam das margens do moderno Partido Republicano —teorias conspiratórias e antipatia por pessoas negras e de pele escura— pareciam conseguir avançar para o centro do palco”, relembra Obama.

O democrata fala sobre seu rival na eleição de 2008, McCain, como um remanescente de uma era perdida, em que republicanos e democratas cooperavam. “Jamais o vi exibir o nativismo de matiz racial que costumava afetar outros republicanos, e em mais de uma ocasião o vi demonstrar uma coragem política genuína.”

E aborda o processo de escolha de Biden para a vaga de vice em sua chapa. Obama precisava de alguém mais velho e experiente, para amenizar a desconfiança que despertava a candidatura presidencial de um senador com apenas dois anos de mandato. “O mais importante, porém, era o que os meus instintos me diziam —que Joe era decente, honesto e leal. Eu acreditava que ele se importava com as pessoas comuns e que, numa situação difícil, seria alguém confiável. E eu estava certo.”

Durante o governo, diversas vezes, Biden deu opiniões sinceras e divergentes da equipe de Obama, como no episódio em que se opôs à pressão dos militares para enviar mais tropas ao Afeganistão.

A obra é muito bem escrita, como seus livros anteriores, “Dreams from my Father”, de 1995, e “A Audácia da Esperança”, de 2006.

Um dos trunfos do livro é nos dar uma visão privilegiada dos bastidores e de opiniões do ex-presidente americano sobre acontecimentos e figuras públicas, e comparar com a maneira com que eles eram retratados pela mídia e pelos próprios políticos, na época.

Em uma cúpula do G20 em abril de 2009, em Londres, Obama chegou a dizer que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva era “o cara” e “o político mais popular da Terra”.

No livro, o ex-presidente americano reserva palavras bem menos gentis para o brasileiro. O democrata começa dizendo que Lula havia causado “boa impressão” em reunião no Salão Oval da Casa Branca naquele ano, e descreve o petista como “ex-líder sindical grisalho e cativante” que “tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres”.

Mas conclui apontando para relatos sobre corrupção no governo e falta de escrúpulos de Lula. “Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”, diz. Tammany Hall era uma organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a corrupção e abuso do poder.

Continue lendo 




Deixe seu comentário