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Artigos • 12 dez, 2023

Verborreia nas nuvens


(de Carlos Castelo) – 

Não sei se é pilhéria, mas meu pai asseverava que o fato teve lugar num voo entre São Paulo e Teresina. Iam ele e minha mãe naquela fileira de três assentos. O pai no corredor, dona Iraci no meio, e uma senhora octogenária na janelinha.
Antes é preciso dizer que minha genitora era bastante comunicativa e adorava conversar, fosse com quem fosse. Eu mesmo, durante outras viagens, a vi puxando papo com Chacrinha, Luiz Gonzaga e Agnaldo Timóteo em saguões de aeroporto.

Em outra ocasião, uma velha amiga de escola foi visitá-la em nosso sobradinho do Sumaré. Não se encontravam há mais de 30 anos. Após cinco horas de conversação, as duas não conseguiram nem se despedir: estavam completamente afônicas.
É claro que minha mãe não deixaria de se apresentar e, em seguida, reportar sua existência àquela idosa da aeronave. Já era uma tradição.

Não deu outra. Antes da decolagem, dona Irá já havia narrado toda sua infância no interior do Maranhão à vovozinha. Com detalhes cirúrgicos: nomes de parentes, logradouros e acidentes geográficos.
Durante o serviço de almoço, que a senhorinha por alguma razão não aceitou, vieram as explanações sobre quando conhecera o marido. O namoro, noivado, casamento e lua-de-mel em Recife.

Ao final da refeição, a conversa entrou pelo nascimento dos filhos. Mais tarde, quando já sobrevoavam o Piauí, o tema entrou pela religiosidade. A devoção por Santa Teresinha do Menino Jesus, Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia.
Revelou meu pai, à certa altura, que apenas minha mãe falava. A anciã entrara num mutismo completo. Ele escutava apenas a voz da esposa discorrendo sobre a odisseia de sair de Teresina para residir em São Paulo, a diferença entre culturas e os aperreios financeiros.
Em determinado instante, porém, baixou um grande silêncio. O pai quis saber o que acontecera.

“Parece que ela ficou cansada e cochilou”, disse mamãe.
Momentos antes de pousarem em Teresina, uma comissária de bordo veio pedir à octogenária para apertar o cinto de segurança. Como ela não respondia, foi sacudida de leve. Continuava inerte.
“Há um médico a bordo?” – indagou a aeromoça.
O doutor que veio examinar a macróbia atestou o óbito por falência múltipla de órgãos. Mas, meu pai, dizia brincando que a causa era outra: excesso de tagarelice no pé do ouvido.

(Publicado no O Dia)




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