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Blog do Manoel Afonso

Opinião e atitude no Mato Grosso do Sul

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Artigos • 30 jan, 2023

Um assombro sem fim


(por Cristóvao Tezza, na revista piauí) –

Ninguém jogou futebol como Pelé, não me venham com comparações ridículas

No momento em que a morte anunciada de Pelé enfim materializou-se na informação simples e inapelável – Pelé morreu –, senti um choque e segurei um nó na garganta, que quase se transforma em choro. O pequeno iluminista pede desculpas e se recompõe do vexame, arrastando um mal-estar inexplicável que vai longe. O engasgo da emoção parece vir do nada, porque o futebol não fez parte relevante da minha infância em Lages, Santa Catarina, onde nasci; apenas lembro vagamente de alguma euforia pública na Copa de 1958. Já em Curitiba, de 1961 em diante, devagar a insídia do esporte começou a se tornar mais presente, com um campinho irresistível próximo de casa, na Rua Mateus Leme, e uma bola oficial que ganhei de aniversário – e que por muito pouco não me matou atropelado numa escapada no meio da rua, em que eu, voando diante de um carro, estava disposto a perder a vida, mas não a bola. Uma freada cinematográfica me salvou. E eu ainda nem era torcedor de nada. Só mais tarde, cursando o segundo grau do Colégio Estadual do Paraná, por influência do colega e amigo Ariel Coelho, ator já falecido, acabei me assumindo (por sorte e boa estrela) torcedor do glorioso Club Athletico Paranaense.

Mas foi apenas na década de 1980, ao perceber a importância do imaginário do futebol na socialização do meu filho Felipe (portador da síndrome de Down), que me interessei de fato pelo esporte e mergulhei nos jogos, até me tornar o torcedor fanático de hoje. Mea culpa: como se o futebol fosse mais uma fonte de sofrimento do que de alegria, sei que sou companhia desagradável para ver jogos, gritalhão, impaciente, ofensivo, imaturo. Durante as partidas, me transformo num técnico imaginário, charlatão e agressivo, a ponto de o próprio Felipe me pedir calma – e pelo menos uma vez, assustado com a agitação do pai súbito irreconhecível, ele sugeriu que eu fosse “ler livro”, e que ele veria o jogo para mim.

Na minha autoajuda particular, o futebol tornou-se um ponto de irracionalidade ocupacional que precisa ser periodicamente alimentado. Não vai ciência futebolística nenhuma aí, só instinto e chutes; sou incapaz de fechar uma escalação completa de memória, tenho dificuldade para explicar exatamente o que é um volante e toda a minha sabedoria tática se resume à ideia de que se os times explorassem com mais frequência as idas às linhas de fundo (que na minha cabeça sempre geram perigo), abrindo à direita e à esquerda em vez de se afunilarem na frente da área, fariam muito mais gols. No meu paraíso futebolístico, haveria mais Garrinchas e menos trombadores. Desmemoriado, admiro os gênios anônimos capazes de, sem recorrer ao Google, descrever vividamente lances em detalhes de partidas de quinze anos atrás, dando nome a cada um dos envolvidos, e até representando na mímica animada de braços e pernas como a bola correu por baixo da barreira (“Você viu aquele lance do Ronaldinho?!”), ou fez uma curva caprichosa até bater na trave, ou o filho da puta do juiz apitou aquela falta ridícula, o cara só tocou na bola – e o torcedor até se levanta da mesa para demonstrar com a ponta do pé o que aconteceu.

Distraído, gosto de ouvir e ler ao acaso comentários dos especialistas, que esqueço em seguida, e às vezes, para esvaziar a cabeça, passo horas acompanhando mesas redondas sobre este tudo que é nada, a substância do mito – o futebol. Como torcedor, pertenço à família estritamente televisiva do futebol, o sofá diante de uma caixa, que se consolidou na década de 1970. A televisão marcou o segundo grande momento da cultura do futebol brasileiro, colocando em outro plano, sofisticado ainda mais pelo advento das cores, os rituais primitivos da antiga Era do Rádio. A primeira grande estranheza que senti nessa passagem foi o ritmo da narração dos locutores: os frenéticos narradores do rádio, que transformavam qualquer pelada num evento espetacular, deram lugar a comentaristas mais ou menos fleumáticos, impedidos de produzir muito exagero por causa da ditadura da imagem viva que descreviam, afinal partilhada com o espectador. O exagero passava a ter limites, o que contraria a lógica do futebol. A sensação era a de que os jogos na tevê eram mais lentos do que os do tempo do rádio.

E hoje estamos entrando em uma terceira era: a pulverização histérica das transmissões da internet, dos aplicativos e do streaming, com arquibancadas digitais gigantescas e globalizadas, despejando comentários furiosos em tempo real das torcidas em 1 milhão de bolhas e gavetas. Tranquilo no sofá, nem me atrevo a tentar explicar o sentido do futebol no mundo de hoje, menos ainda no Brasil. Apenas sinto que, simbolicamente, o futebol ocupa uma zona cultural fronteiriça que serve de álibi para tudo, convergência de todos os lugares comuns interpretativos do país, máquina onipresente de metáforas políticas, religiosas, morais, filosóficas, sociais. Além, é claro, de produzir sozinho, sob o controle universal da Fifa, inacreditáveis montanhas de dinheiro e concomitantes falcatruas em valores que ultrapassam o PIB de muitos países.

Por que, então, chorar por Pelé? De onde veio o nó da minha garganta? Por que restou dele na minha cabeça uma imagem boa e positiva que vai além do talento em campo, enquanto que com outros grandes jogadores eu não gostaria de compartilhar nem um cafezinho? E – avançando na psicanálise caseira – por que a exposição pública desse nó me incomoda?

Pessoalmente, nunca vi Pelé jogar. Aliás, como milhares de brasileiros, frequentei muito pouco os estádios, na média uma ou duas vezes a cada três ou quatro anos. O conforto do sofá é cada vez mais irresistível. A vantagem dessa ausência conspícua é que, pela raridade, sou capaz de lembrar com nitidez de cada um dos jogos que assisti ao vivo, eventos marcantes como espetáculos de circo, da impressionante multidão em torno (um Maracanã lotado num jogo amistoso da Seleção Brasileira contra a antiga Alemanha Oriental, vitória de um a zero, gol do Junior, que perdi porque, esmagado num mar de vascaínos, estava amarrando o cordão do tênis quando aconteceu; ou Equador x Honduras, na Arena da Baixada, na Copa do Mundo, que vi, filmei e fotografei com o Felipe, dois a um para o Equador, gols de Valencia – um belo jogador, que aliás revi pela televisão na última Copa).

Obviamente, não era preciso ter visto Pelé ao vivo para amá-lo, admirá-lo ou idolatrá-lo. Parece que o nome de Pelé chegou ao meu imaginário antes mesmo de a simples ideia do futebol tomar corpo na minha cabeça de criança como o de um ser invencível, um Deus da perfeição, o atleta imbatível, um super-herói do país, num momento histórico – o final da década de 1950 – especialmente alegre e otimista, com o surto da prosperidade ocidental pós-Segunda Guerra que respingava no Brasil, criando uma nova classe média e começando a fazer a passagem sem volta da velha e bucólica vida rural para a urbanização selvagem e globalizante. Continue lendo 




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