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Política • 26 jun, 2023

O juiz anti-Lava Jato


(Da Crusoé, por Wilson Lima) –

Como Eduardo Appio age para sepultar a maior operação contra a corrupção da história do Brasil

Há cerca de uma semana, o Antagonista revelou que está em estudo um projeto para transformar em vara previdenciária a 13ª Vara Federal de Curitiba, nacionalmente conhecida como o berço da Lava Jato. Seria mais um passo para varrer a memória da operação que desvendou o mais intrincado e vultoso esquema de corrupção da história brasileira, o petrolão. Mas não o último. Este ano, teve início na 13ª Vara um movimento que pode ir ainda mais longe que os julgamentos do STF que consideraram Sergio Moro parcial no julgamento de Lula e anularam diversos processos da Lava Jato por razões de competência processual. Esse movimento poderia invalidar provas que estão na origem de toda a operação, causando uma espécie de efeito dominó. Seu protagonista é o juiz Eduardo Appio, personagem controvertido que assumiu a 13ª Vara em fevereiro, sucedendo a juíza Gabriela Hardt que, por sua vez, substituiu Moro quando ele deixou a magistratura. Por trás das ações de Appio há uma mistura de antipatias pessoais e simpatias ideológicas que formam um caldo explosivo.

Antes de assumir seu posto em Curitiba, Appio já tinha passado pela Lava Jato, mas como testemunha. Em 6 de abril de 2017, o então juiz Sergio Fernando Moro condenou o petista André Vargas, ex-vice-presidente da Câmara, a quatro anos e meio de prisão pelo crime de lavagem de dinheiro. Seu irmão Leon Denis Vargas pegou outros três anos, por ocultar a origem do dinheiro utilizado para a compra de um imóvel em Londrina, segunda maior cidade do Paraná. A esposa de Vargas, Eidilaira Soares Gomes, foi absolvida na época, mas o imóvel permaneceu bloqueado judicialmente até 2020.

Segundo a sentença de Moro, Vargas adquiriu, em 2011, um imóvel de 980 mil reais com 1,1 milhão de reais obtidos com desvios de contratos firmados entre a Caixa Econômica Federal, o Ministério da Saúde e a agência de publicidade Borghi Lowe. O ex-deputado declarou que a casa tinha valor de 500 mil reais. Em 2015, Appio foi bisbilhotado por integrantes da força-tarefa por suposto envolvimento no episódio. Na época, o então chefe da Lava Jato, Deltan Dallagnol, escreveu o seguinte parecer sobre a situação de Appio:

A participação de Leon Vargas nas negociações se comprova por vários e-mails trocados entre Leon e o vendedor da casa, Eduardo Appio. Na mensagem eletrônica enviada no dia 23 de novembro de 2011, Leon Vargas diz: ‘Eduardo na escritura o valor total tem que ser 500 mil reais…’ Na proposta de compra e venda apresentada pelo vendedor do imóvel consta como valor de venda da residência 980 mil reais”. À época, o juiz federal recebeu depósitos fracionados entre maio e novembro pela venda do imóvel e teve que prestar esclarecimentos ao seu colega Sergio Moro. Uma situação humilhante para um juiz federal.

Embora não houvesse elementos que pudessem incriminar Appio, ainda em 2015, um pedido de providência foi encaminhado por integrantes da Lava Jato aos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Em maio de 2017, o TRF-4 estabeleceu pena de censura ao magistrado, que ficou por um ano fora da lista de promoções por merecimento. A sentença foi confirmada também pelo Conselho Nacional de Justiça, o CNJ.

Sobre o episódio, Appio argumentava na época que não conhecia Vargas e que durante a transação houve a garantia de que os recursos da compra do imóvel eram lícitos e que a negociação ocorreu à distância. Vargas depois foi absolvido por unanimidade pelo TRF-4.

Em Curitiba, é notória a indisposição entre Appio, Deltan e Moro. Os três são considerados inimigos mortais. “Essa rixa é de muito tempo, por questões ideológicas e práticas”, admitiu em caráter reservado um amigo em comum do trio. Alguém que, inclusive, foi acionado algumas vezes para tentar apaziguar os ânimos entre esses personagens.

Nos últimos meses, Appio deixou claro que ficou extremamente magoado com Deltan ao ser atacado nas redes sociais pelo ex-procurador quando ele assumiu o trabalho da Lava Jato. Não só pelas críticas, mas pelo fato de elas terem sido desferidas em um momento em que Appio ainda chorava o luto pelo seu pai, falecido no final do ano passado. Deltan também se incomoda ao saber que, em conversas reservadas, Appio se refere ao ex-procurador de forma jocosa, utilizando termos como “garoto mimado. Appio nega qualquer comportamento agressivo e ou um eventual movimento contra a Lava Jato.

Hoje, Appio é alvo de seis reclamações disciplinares no CNJ, impetradas por personagens como o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e os deputados federais Marcel Van Hatten (Novo-RS) e Ubiratan Sanderson (PL-RS). Eles o acusam de ser ligado ao PT. Para responder a todas elas, o juiz contratou uma equipe de advogados por 40 mil reais. Para pagá-los, foi obrigado a vender uma BMW usada, ano 2017.

Em novembro de 2022, o cargo de juiz titular da 13ª Vara ficou vago em Curitiba. Hardt foi designada para a 3ª turma recursal do Paraná. Appio se candidatou ao posto e acabou por conquistá-lo, por ser o juiz com mais tempo de serviço entre os concorrentes. Antes mesmo de assumir, em fevereiro deste ano, deixou saber que pretendia refazer o trabalho de Moro. Na visão dele, era necessário retornar a Lava Jato ao rumo do “Direito”. Isso foi um bálsamo para os ouvidos daqueles que tentam, desde 2014, enterrar a operação.

Tecnicamente, Appio sempre foi um crítico das ações de Sergio Moro. Em artigos e manifestações a colegas juízes, classificou o hoje senador como parcial e com métodos pouco republicanos. Em contrapartida, Appio tem várias digitais que o ligam diretamente ao PT.

Não somente vendeu uma casa a um petista ex-vice presidente da Câmara, como fez doações ao hoje presidente Lula e à então candidata a deputada estadual pelo partido, Ana Júlia Pires Ribeiro. Os valores foram ínfimos: 13 reais a Lula e 40 reais a Ana Júlia. Ambos foram eleitos. Ele também foi flagrado ao utilizar a alcunha “LUL22” no sistema eletrônico da Justiça Federal.

Após assumir a Lava Jato, Appio passou a recolher denúncias de críticos da Lava Jato e de Sergio Moro, como o advogado Tacla Duran e o ex-deputado estadual do Paraná Tony Garcia. A partir daí, ele pretendia tomar novos depoimentos de personagens centrais da operação, como de Alberto Youssef, da doleira Nelma Kodama (tida como amante de Yousseff), da ex-tesoureira de Yousseff Meire Poza, do ex-ministro Antônio Palocci e do ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco.

Appio estava em busca de informações específicas: queria provar que Moro ou Dallagnol, então procurador-chefe da Lava Jato no Paraná, haviam se utilizado de métodos ilícitos para obter confissões daqueles cinco personagens. Isso poderia desmantelar toda a operação.

Youssef está na origem da Lava Jato. Foi ao investigá-lo que a Polícia Federal começou a puxar o fio que conduzia até a Petrobras, as grandes empreiteiras brasileiras e a cúpula de diversos partidos políticos.

Em março deste ano, Appio mandou prender Yousseff por descumprimento de uma medida cautelar. Ele o acusava de mudar de domicílio sem comunicar à Justiça e de ter elevada periculosidade social, sendo reincidente em crimes de colarinho branco e lavagem de dinheiro. Um dos objetivos, enquanto o doleiro estivesse na cadeia, era interrogá-lo sobre a maneira como sua delação premiada havia acontecido. A prisão, no entanto, foi rapidamente revogada pelo TRF-4.

Depois disso, Appio determinou a instauração de um inquérito para investigar um suposto grampo ilegal instalado na cela de Alberto Youssef, na época em que o doleiro estava preso na Polícia Federal, bem no início da Lava Jato. Esses fatos já tinham sido objeto de sindicância da PF, que foi arquivada em 2017 sem conclusão. Appio aproveitou esse fato e pediu a instalação de outro inquérito para revisitar informações obtidas pela corregedoria da PF de Curitiba sobre “indícios concretos e documentos acerca do cometimento de graves delitos, em tese, na referida carceragem”.

Dependendo do trâmite do inquérito, a defesa de Youssef já tem um plano pronto: solicitar ao STF a anulação da colaboração premiada do doleiro. Eles alegariam que uma escuta ilegal foi utilizada no processo do doleiro para forçá-lo a assinar a delação. O caso está sob investigação há aproximadamente 30 dias e segue sob sigilo. “A produção da prova ilícita macula, por si só, toda a investigação. Retiraram de Youssef a oportunidade de responder processualmente de forma legal”, diz o advogado Antonio Figueiredo Basto, responsável pela defesa do doleiro.

Magistrados e advogados ouvidos por Crusoé afirmam que a questão é complexa, mas levar à aplicação de algo que no direito se chama de “Teoria dos frutos da árvore envenenada”. Em outras palavras, uma suposta prova ilícita contamina todo o processo. A nulidade processual absoluta não tem prazo para ser reconhecida. Então, o juiz que sucede um colega pode rever suas decisões, inclusive de ofício, se identificar alguma causa de nulidade absoluta”, diz o juiz Waldir Viana Júnior, professor e vice-diretor da escola de magistrados da Bahia.

O juiz só pode fazer algum tipo de revisão se for provocado, e a depender do ato. Seria um instituto de uma revisão criminal. A revisão criminal não seria feita pelo juiz de primeiro grau, mas pelo Tribunal da Região. É praticamente impossível revisar uma decisão de juiz anterior. É necessário se iniciar o processo do zero”, contrapõe-se o especialista em direito penal Marcos Rudá.

Mas esse não era o único passo do juiz anti-Lava-Jato. Appio pretendia rever todos os acordos de leniência firmados pelo Ministério Público Federal. Ele alega que não foram feitas atas das discussões prévias realizadas pelo MPF com as empresas que reconheceram delitos. Entre os alvos principais estariam o acordo de leniência da Braskem, no valor de 2,8 bilhões de reais, e o da construtora Odebrecht, este no valor de 2,7 bilhões de reais. A questão aqui é que, juridicamente, nunca houve a necessidade de uma ata preparatória antes de ser firmar qualquer acordo de leniência.

No caso do acordo da Odebrecht, há também uma questão pessoal envolvida que não pode ser desconsiderada. O pai de Appio, o ex-deputado pelo PP  Francisco Appio, figurou na lista da Odebrecht e tinha o apelido de Abelha. Em 2014, Francisco também recebeu aproximadamente 15 mil reais em doação da JBS, outra empresa enrolada na Lava Jato.

Em 22 de maio, Appio foi afastado da 13ª Vara Federal de Curitiba, acusado de ter ameaçado o advogado João Eduardo Barreto, que foi sócio de Moro em um escritório de advocacia e é filho do desembargador Marcelo Malucelli. Antes disso, porém, ele conseguiu dar início a uma correição do Conselho Nacional de Justiça não apenas na 13ª Vara, mas também no TRF-4. Há aproximadamente 50 dias, Appio encaminhou um ofício a Brasília mencionando supostos abusos cometidos por Moro. Uma das denúncias encaminhadas ao CNJ afirma que foram gastos na Operação em Curitiba 1 bilhão de reais, supostamente sem comprovação. Appio também voltou suas baterias contra o TRF-4, que teria esvaziado a 13a vara antes que ele a assumisse, removendo oito dos dez servidores do órgão.

Ao receber o ofício, o corregedor do CNJ, ministro Luiz Felipe Salomão, decidiu instaurar uma correição extraordinária em Curitiba. Na sexta-feira da semana passada, Salomão desembarcou na capital parananese e conversou com servidores, com Hardt e outros juízes locais. Salomão foi indicado e nomeado por Lula para o STJ e costuma ser citado como possível indicação do presidente para a vaga que será aberta no STF com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, em outubro.

Nos últimos quatro anos, o Supremo Tribunal Federal alvejou a Lava Jato em diversos pontos. Em novembro de 2019, Lula foi solto após uma revisão da prisão em segunda instância. Em 2021, o tribunal declarou a suspeição de Moro por parcialidade e considerou que Curitiba não era o foro apropriado para julgar o atual presidente. Com isso, todos os casos da força-tarefa tiveram de recomeçar do zero. Mais recentemente, o Supremo arquivou uma investigação contra Arthur Lira, que tinha começado com uma delação de Alberto Youssef. Este ano, Appio tenta abrir um novo caminho que pode ter consequências ainda piores. Seria um brutal retrocesso no combate à corrupção.




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