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Política • 06 fev, 2020

Um jornal feito com arte e ousadia ( artigo)


Jornal da Tarde (1)

(por Célio Heitor Guimarães)

Houve um tempo em que o melhor jornal do Brasil – em forma e conteúdo – era feito em São Paulo, para circulação apenas na capital paulista e arredores (Luiz Renato Ribas e eu o recebíamos diariamente, com um dia de atraso, por gentileza do bom amigo Wilson Tomaz). Era o “Jornal da Tarde”, irmão mais novo de “O Estado de São Paulo”, criado pelo dono, Ruy Mesquita, e por jornalistas do quilate de Mino Carta, Murilo Felisberto e Fernando Mitre.

Ruy Mesquita queria algo novo, de circulação vespertina, para fazer companhia ao centenário “Estadão”, mas independente e diferente do irmão. O embrião foi a “Edição de Esportes”, com um visual arejado, fotos abertas, textos de boa leitura. Fora também criação de Mino Carta, trazido da Editora Abril, e dirigido pelo caçula dos Mesquitas, Luiz Carlos.

Ruy abriu o cofre da empresa, então sediada na Rua Major Quedinho, no centro velho de São Paulo. Autorizou a contratação dos melhores jornalistas existentes na praça e triplicou os salários pagos pelos concorrentes.

O “Jornal da Tarde” estreou em 4 de janeiro de 1966. E já com um “furo” na capa: o casamento de Pelé. A reportagem deu ao JT o seu primeiro Prêmio Esso de Jornalismo, a maior láurea da categoria na época. A ele se somariam, nos anos seguintes, outros oito. Entre eles, a inesquecível capa da edição de 06/06/1982: a foto de página inteira de um garoto de cerca de 12 anos vestindo a camiseta da seleção brasileira de futebol e chorando. Abaixo, apenas uma pequena legenda: “Barcelona, 5 de junho de 1982”. No dia anterior, a seleção nacional fora derrotada pela seleção italiana por 3 a 2, na Copa da Espanha.

O JT nascera em uma época difícil. Tempo da ditadura militar. Os Mesquitas foram dos primeiros a apoiar a “revolução de 1964”. Mas também os primeiros a romper com a quartelada, ao perceber que, em vez de combater a desordem, o comunismo e a corrupção, o governo fardado pretendia apenas manter-se no poder, agredindo a liberdade dos cidadãos e os direitos democráticos.

Com a edição do AI-5, a censura instalou-se nos jornais, nas revistas, no rádio e na televisão. Os Mesquitas se recusaram à submissão. No JT, no espaço das matérias censuradas, que não podia sair em branco, Ruy mandou publicar receitas culinárias. Os leitores estranhavam, porque as receitas não davam certo. Não eram para dar.

A ordem interna era que nenhum texto sobre assuntos sensíveis ao regime deveria ser assinado. O jornalista Fernando Portela, então editor da Geral, nunca esqueceu o dia em que publicou, sem assinatura, uma reportagem contra o célebre delegado Sérgio Paranhos Fleury. Título: “Fleury acusado de corrupção. E ele se sai bem?”.

Murilo Felisberto levou um susto: “Você quer experimentar o pau de arara?”

Portela foi intimado a prestar esclarecimentos na Polícia Federal. O delegado, arrogante, com um exemplar do JT na mão, lhe apontou o título.

– Quem escreveu isso aí?

– Não sei.

– Como não sabe? O senhor é o editor e estava no jornal naquele dia.

– Sim, mas eu tenho cinco redatores comigo, além do subeditor, e eu mesmo escrevo alguma coisa. São quinze páginas por dia.

Depois de uma pausa calculada, o delegado decretou:

– Vou lhe dar um prazo para descobrir quem escreveu isso. Volte na semana que vem, e me conte.

Portela voltou à redação, procurou o editor-chefe Murilo Felisberto e disse que precisava de um advogado.

– Antes, vá contar essa cagada para o doutor Ruy. Mas vá sozinho.

Preocupado, Portela bateu à porta e entrou na sala de Ruy Mesquita. O diretor levantou os olhos do texto que lia.

– O que aconteceu?

O editor explicou toda a história. Sem emitir qualquer juízo, o doutor Ruy ditou as instruções:

– Faça o seguinte: vá lá e diga que fui eu que escrevi o título.

– O senhor?!

– Sim. Diga que nessa noite eu estava com insônia e fui dar uma volta na redação. Perguntei se podia ajudar, e você me disse: “Tem esse título do Fleury”. Eu sentei e escrevi.

No dia marcado, Fernando Portela se apresentou à Polícia Federal. O delegado, com certo sadismo no olhar, perguntou:

– E então? Quem escreveu o título?

– Foi o doutor Ruy Mesquita – respondeu Portela, e repetiu toda a história.

Ao final do relato, o delegado não escondeu a sua raiva.

– O senhor saia da minha frente! E saia já!

Esta e outras histórias são contadas, com detalhes, por Ferdinando Casagrande, que entrou no JT como estagiário em 1990 e dele se despediu, como editor da Geral, em abril de 2005. O livro, lançado pela Record no final de 2019, é precioso e sua leitura merece ser recomendada com entusiasmo.

De minha parte, conclui que um bom jornal se faz com talento, ousadia e criatividade. Mas também com liberdade e apoio da direção, ainda que dê prejuízo financeiro, como foi o caso do saudoso “Jornal da Tarde”.




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