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Artigos • 03 ago, 2020

A liberdade de expressão e as posições estratégicas na esfera pública


O professor da Wharton e renomado autor de bestsellers, Adam Grant, publicou a seguinte figura em seu Twitter:

A utilização de quadrantes, quando se incorpora uma dimensão adicional à análise, multiplica os olhares possíveis, contribuindo para uma melhor percepção quanto ao que está em jogo, em termos nuançados e ajudando a superar maniqueísmos. Gosto da técnica e o emprego também sempre que possível. Mas no presente artigo quero dialogar com a proposta de Grant.

São combinadas duas dimensões – padrões de qualidade e tolerância ao dissenso. Padrões de qualidade, em termos genéricos, refere-se aqui ao nível de reflexão agregado pela sociedade (a análise vale também para o indivíduo) às manifestações expressivas. Tolerância ao dissenso tem a ver com o grau de receptividade e aceitabilidade de manifestações divergentes. Portanto, uma dimensão tem a ver com nível cultural e potencial de reflexão; a outra com capacidade de convivência com o ponto de vista diferente.

São assuntos preciosos ao liberalismo. As revoluções liberais – a americana e a francesa – foram empreendidas contra regimes absolutistas, nos quais a liberdade de expressão era fortemente reprimida. A possibilidade da livre expressão do pensamento estava no centro dessas revoluções, que foram lideradas por pensadores. Da mesma forma, a convivência com o diferente era um elemento relevante e muitos são os que conhecem a máxima de Voltaire: “posso discordar completamente do que você diz, mas lutarei até a morte pelo seu direito de dizê-lo”. Combinadas as dimensões, são geradas quatro posições, as quais, em maior ou menor grau, constam na esfera pública atual.

A situação ideal é aquela representada pelo quadrante superior esquerdo,  quando os padrões de qualidade são elevados – há reflexão e capacidade crítica – e existe abertura para a convivência de ideias divergentes. Nesse ambiente, as manifestações expressivas que são levadas a público passam pelo único controle considerado legítimo pelos liberais – o da própria consciência de quem as expressa. A autocontenção é o elemento chave aqui. O participante da esfera pública pondera, criticamente, se sua manifestação deve ir a público – qual o nível de contribuição que ela trará para a sociedade? É uma pergunta que só cabe ao próprio responder. Que existem manifestações expressivas perniciosas e que degradam tanto a esfera pública quanto a própria sociedade, é certo. Que essas possam alcançar o mesmo palco de outras manifestações, é terreno para discussão e vai envolver referenciais éticos individuais.

A dimensão de abertura ou fechamento da sociedade para a presença de ideias diferentes na esfera pública vai temperar o poder, individual ou coletivo, de expressá-las. Sociedades mais fechadas à essa convivência exercerão vários tipos de pressão para desencorajar a expressão e a circulação das ideias. Sociedades mais abertas terão mais receptividade e aceitabilidade ao debate de ideias estranhas. No primeiro quadrante, a sociedade é aberta e receptiva, favorecendo que as ideias venham a público e sejam amplamente discutidas – o que, conforme já argumentado, não é licença definitiva para a expressão de quaisquer ideias (haja vista a necessidade do elemento de autocontenção consciente).

Se a sociedade é aberta, mas o nível de qualidade – capacidade de ponderação e crítica – é baixo, ocupa-se a posição do quadrante inferior à esquerda: uma cultura de megafone. Qualquer um pode expressar suas ideias na esfera pública, conseguindo por vezes grande repercussão – ideias estranhas têm um grande potencial de viralização, sobretudo quando memificadas. É o megafone, que se tornou acessível a qualquer um com acesso a internet, um telefone celular na mão e uma conta em rede social. Acusa-se a direita de se encaixar nesse quadrante – dando voz e visibilidade a opiniões esdrúxulas e sem cabimento, mas com potencial para divertirem e distraírem as massas, na versão mais inocente, e persuadi-las, na versão manipuladora.

Se o nível de qualidade é baixo e a sociedade é pouco receptiva a novas ideias, acontece a câmara de eco. Para usar um termo mais empregado recentemente, preponderam aqui as bolhas. As ideias estranhas, encontrando pouco espaço para ressoarem mais amplamente na sociedade, circulam entre membros do mesmo clube, entre participantes dos mesmos fóruns, entre as mesmas malhas das redes sociais. Ficam reverberando – produzindo eco – exercendo o papel limitado de reforçarem crenças de quem já é fanático. Essas postura é identificada tanto à direita quanto à esquerda.

Em sociedades fechadas, mas com nível alto de crítica, o risco é a cultura do cancelamento. O indivíduo considera que as suas ponderações reflexivas ordenam categoricamente que demonstre publicamente e da forma mais expressiva possível seu repúdio pelas ideias estranhas que ousem aparecer na esfera pública. São culturas que valorizam em excesso marcas identitárias ou que determinam lugares a partir dos quais se pode falar qualquer coisa – libelos lançados à esquerda.

Simplificações nem sempre contribuem para o debate. No caso desse tuíte de Adam Grant, entretanto, os quadrantes propostos ajudam a iluminar alguns pontos sobre o que está acontecendo na esfera pública atual, bem como sobre as posições preferidas de alguns atores presentes no espectro político. De um ponto de vista utópico, que tanto o nível da crítica (e seu elemento de autocontenção) quanto o elemento da tolerância (e sua capacidade de convivência com o divergente) se elevem, convergindo para o quadrante em que a liberdade de expressão é um elemento de saúde e força das sociedades humanas.

Fonte – Congresso em foco

*André Rehbein Sathler é doutor em Filosofia.




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